sábado, 7 de dezembro de 2013

De volta à Academia... ops, apertei caps lock sem querer, quis dizer academia de ginástica, não uma instituição de ensino

Então, resolvi voltar à academia. Isso mesmo. Estive parado mais por falta de tempo do que de vontade.

Não sou um desses incautos que julgam ser mais importante exercitar a mente do que o corpo. Esses coitados entendem tanto da vida quanto um recém-nascido.

Também não vou à academia por fins estéticos. Não critico quem o faça, afinal que motivo eu teria para me importar com o que os outros fazem ou deixam de fazer com suas vidas cretinas? Já tenho trabalho suficiente criando meu filho por correspondência e tendo que visitá-lo uma vez por década no sul do Putaquepariquistão. Os outros que façam o que bem entenderem da vida, desde que não me encham a paciência nem atentem contra a ordem social e os bons costumes.

Apenas ressalto que ir à academia com essa finalidade é um desperdício de tempo, quando se poderia estar perseguindo objetivos concretos muito mais úteis. É como se um jardineiro podasse uma árvore apenas para deixá-la visualmente atraente, permanecendo alheio ao fato de que a prática torna os frutos mais nutritivos e deixando de aproveitar o alimento. Entenderam? Explicarei melhor (quem sabe?)!

Nessa vida a inteligência, a astúcia e a perspicácia são tão importantes quanto força, agilidade e um sistema imunológico eficiente.

Vivo segundo três princípios: 1) a mente deve ser tão forte quanto o corpo; 2) o corpo deve ser tão forte quanto a mente;  3) a mente e o corpo devem ambos possuir força equivalente, de modo que ao serem somadas e divididas por dois, cada parte volte a seu estado de origem sem sofrer nenhuma alteração de volume ou área.

A questão é: vivemos em tempos bestiais. A cada dia a Gentileza adoece um pouco mais em um leito contaminado em algum hospital imundo; a Cordialidade se tornou uma moribunda que compartilha seringas em becos com a Ternura e a Compaixão, aguardando a dose que lhes colocará fim ao sofrimento; a Fraternidade é uma mendiga louca, que anda por aí entoando frases desconexas; o Respeito, ah, o Respeito... esse saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou.

Nas ruas, nas escolas, nas padarias, o que se propaga é a vilania, o egoísmo, a insensibilidade. A babaquice é o grande mal do século, e na maioria das vezes o diálogo é inócuo para neutralizá-la. Afinal, de nada adianta sua eloquência, suas argumentações, seu raciocínio bem estruturado quando o interlocutor é um verme com o caráter de um estuprador de idosas e a compreensão de um texugo com encefalite progressiva. Às vezes é melhor economizar saliva e deixar os punhos falarem.

Por isso acredito que é preciso se manter pronto para o confronto físico. Afinal, a qualquer minuto você pode ser destratado por um caixa de supermercado e ter de ensiná-lo a tratar um cliente de maneira apropriada; ou ainda talvez você precise abrir caminho para fora do metrô lotado com uma boa dose de empurrões; ou então pode ser necessário ensinar bons modos a algum sujeito que buzina atrás de você no trânsito um micro-milésimo de nano-puto-segundo após o farol ficar verde; ou quem sabe seja preciso colocar algum imbecil de ego inflado em seu devido lugar com meia dúzia de sopapos.

Quando o Apocalipse se instalar - o que não vai demorar muito, pelos meus cálculos -, não pensem que a humanidade se unirá pela desgraça e dará início a uma nova era guiada pela razão e pela bem-venturança.

Nada disso! Será uma grande, sangrenta e interminável batalha pela sobrevivência. Eu sei! Eu vi! Por isso mesmo, tenho o cuidado de manter a forma física assim como a destreza mental, e um bom par de cuecas limpas.

"Mas Braddock, você está pregando a violência?" Ora, que pergunta, é claro que sim! Só que uma violência consciente e positiva. Mas disso tratarei mais para frente, quando eu provar por (A + B) - C/3% que o ditado "não julgues para não seres julgado" não passa de um mantra da opressão!






Academia ao ar livre em Kiev, na Ucrânia. Porque um pouco de tétano não faz mal a ninguém. (Crédito: Marcos Mion)





Mas como eu dizia, me matriculei em uma academia. Nada de especial, nada moderno. Apenas alguns aparelhos enferrujados já são o suficiente para eu me exercitar. Como é costume, precisei realizar aquele tal de exame de saúde. O instrutor, um tipinho esquisito, vestindo uns oito números menores do que o tamanho dele, veio fazendo aquelas perguntas de praxe. “Fuma?”, “bebe?”, “joga?”, "vai ao banheiro com frequência?", “alguma doença grave na família?”. “Sim”, “sim”, “sim”, “s... cale a boca e termine logo com isso”.

Depois disso, o instrutor precisou mostrar como operar aqueles aparelhos. A cada exercício que passava, ele repetia como um mantra: “não esqueça de respirar, hein?”. Tomei aquilo como um insulto. Como assim não esqueça de respirar? Quem se esqueceria de tal coisa? Isso é o tipo de lembrete que você precisa dar a maratonistas aquáticos, uma testemunha de um crime sendo asfixiada com um saco plástico por um mafioso ou ainda aos passageiros de uma aeronave que sofre uma despressurização durante uma turbulência enquanto sobrevoa o Mar Adriático.

Por isso, após a quinta vez que ele repete aquela frase, agarro o maldito pela alça da regata, o levo até um tonel cheio de água da calha e mergulho a cabeça do infeliz. Quando permito a ele emergir novamente, digo para ele: "não se esqueça de respirar, cretino". Então volto a submergi-lo.

Bem, de nada adianta músculos sem agilidade e conhecimento de batalha. Por isso também resolvi praticar artes marciais. No primeiro dia, o professor nota minha técnica e pergunta se eu já havia praticado alguma luta antes. Explico que não, mas nos dias em que vivi nas florestas hiperbóreas eu costumava enfrentar diariamente ursos-pardos para proteger meu estoque de geléia de atum.

O professor então resolve me dar um teste. Ele manda que eu suba no ringue para fazer um sparring com um dos alunos mais graduados de lá, um sujeitinho baixinho e troncudo, muito se assemelhando a um pote de palmito. Ele vem para cima de mim, então, rapidamente, saco meu revólver e dou um tiro na coxa do infeliz. Mais uma vitória em meu cartel.

E é isso. Agora sumam daqui.

Fique mais um pouco e leia uns textos antigos:
Essa história me lembrou uma crítica que fiz de um filme muito famoso. Descubra qual! Vamos, descubra, clique aqui, porra!
Braddock Lewis em: o terror que vem dos céus
Braddock Lewis e o pênalti da discórdia

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Antologia do ônibus XXVVIIIIIIQVI

Tive que voltar a tomar o ônibus depois que o motor do meu Chevete baleado superaqueceu. Depois disso me arrependi de ter usado o líquido de arrefecimento para fazer uma sopa de couve-flor.

A sopa estava deliciosa, não entendam errado, mas agora vou ter que desembolsar uma bica para reparar o maldito motor, o que significa que terei de adiar de novo minha cirurgia de reimplante do ciso (sim, ele me faz muita falta). Ou talvez, em vez de gastar uma bica no carro, eu literalmente dê uma bica na têmpora do mecânico e fuja enquanto ele estiver desacordado sobre uma poça de óleo. Torço para que ele cometa um deslize que justifique essa medida. Afinal, não sou nada menos do que justo.

Enquanto aguardo o desenrolar dos acontecimentos para aplicar minha sentença àquele rato de motores, o ônibus volta a ser meu principal meio de locomoção por esta cidade nojenta. Logo percebo as mudanças que o transporte público sofreu nos últimos tempos. As barras de apoio foram pintadas de amarelo. Só.

Pensam que não é uma grande coisa? Pois imagine que, por um segundo, você tenha que retirar a mão da barra para coçar a cabeça com o veículo em movimento; ao mesmo tempo, o motorista sofre do tradicional espasmo na perna (síndrome que acomete nove em cada oito motoristas de ônibus) e - acidentalmente, claro - afunda o pé no freio, reduzindo instantaneamente a velocidade de 87 km/h para 8 km/h. Nesse momento, totalmente surpreendido, você só poderá contar com seus reflexos para não ser apanhado pela mão impiedosa da inércia e ser arremessado de cabeça contra o pára-brisa. É aí que a barra recém-pintada de uma cor vibrante fará toda a diferença, pois será mais facilmente captada pelo aparelho ocular, que enviará sinais para o córtex subalterno pré-frontal (possivelmente) desencadear a descarga elétrica que impulsionará o braço na direção da barra e o salvará de virar uma bola de pinball humana dentro de um tubo de lata gigante cheio de quinas mortais.

Sim, aposto que você agora está revendo seus conceitos, e pensando que talvez não esteja sendo tão justo ao reclamar das condições do transporte público; de como exagerou ao sair bradando por aí que as autoridades não fazem nada para melhorar a vida dos passageiros de coletivos.

Arrependa-se!



Reparem como o cinza prejudica a visibilidade e a coordenação motora dos passageiros (crédito: um cobrador sem senso de direção)



O ônibus finalmente chega, empurro quem estiver à frente, abrindo caminho até a roleta. Quando uma senhora passa seu cartão liberando a catraca, rapidamente lanço uma cortina de fumaça que cega a todos momentaneamente e me esgueiro girando a roleta, um pequeno truque que aprendi com um assistente social para pegar condução de graça. Que se matem nas ruas por causa do passe livre. Eu faço minha própria tarifa!

Vou avançando em meio àquele caos humano a cotoveladas, e enfim consigo achar um espaço para esticar minha rede entre duas barras de segurança bem em frente à porta de desembarque, obrigando os passageiros a abaixar para conseguir sair.

No meio da viagem, vejo uma mulher pedindo licença aos outros passageiros e avançando em direção à porta de saída, no fundo do veículo. Com apenas uma das mãos, ela tentava se equilibrar, se jogando de barra em barra entre os solavancos do ônibus. Com a outra mão, ela segurava a filha pequena, que, ao contrário da mãe, parecia estar se divertindo com a situação inusitada. Deduzi que devia ser a primeira viagem de ônibus da garota.

Quando finalmente a mulher conseguiu chegar perto da porta, ela iniciou uma conversa singela com a pequena.

- Está vendo filha? É assim que a mamãe vai para o trabalho todo dia.

- Eu também vou andar de ônibus quando crescer? - perguntou a jovem incauta.

- Claro que vai, filha. Quando for maior, vai andar todo dia de ônibus.

Sou tomado de uma inesperada sensação de piedade. Em um raro momento de compaixão, algo que acontece a cada dez anos bissextos (se não for ano de Olimpíada), penso comigo mesmo se não seria melhor pegar aquela jovem infanta e arremessá-la para fora do veículo em movimento, e assim poupá-la do sofrimento futuro.

Já que a mãe não se importava com o destino da própria filha, num terrível ato de abandono maternal, caberia a mim salvá-la.

Contudo, no momento que me virei para abrir a janela, o ônibus parou e as duas desceram.

Até hoje o rosto daquela pobre criança me assombra. Viverei para sempre atormentado pela chance desperdiçada de salvar uma vida inocente.

Em vez de ver algum viral no YouTube, leia mais:
Sua boa ação do dia: ajude alguém a chorar

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Corram para as colinas... então, colham maçãs e façam uma torta: eu voltei!

Muito bem. Os leitores que avidamente entram neste blog a cada fração de segundo em busca de palavras de extrema sapiência em algum momento devem ter notado que estive ausente durante um longo período. Sim, realmente me fui. Estava aqui, mas no instante seguinte isso já não era mais verdade. E assim continuou por um bom tempo, até que voltou a ser verdade novamente. Ou seja, agora é incontestável!

Não sou de dar satisfações. Nunca o fiz para o governo, para a Receita Federal, nem para meu agente da condicional. Ao meu progenitor, prestei esclarecimentos uma única vez, exatamente quando expliquei o porquê eu não explicaria mais nada. Mas abro uma exceção para os nobres 14 leitores deste blog (parece que houve uma debandada de sete leitores devido ao longo hiato sem atualizações) e contarei, resumidamente, o que se passou nesses quatro meses em que fiquei sem postar.

Sem muito mistério, estive dando continuidade ao meu globalmente famoso serviço de consultoria. Primeiro, fui até Falujah para dirigir a implementação de uma mesquita; depois, passei pelo Iraque e fui convidado pelo presidente local a acompanhar a primeira cerimônia de casamento entre pessoas do mesmo sexo por lá; mais adiante, estive nos Estados Unidos, onde tomei um porre homérico com George W. Bush (que figura) e juntos saímos colando chiclete mascado na maçaneta de carros estacionados nas ruas.

Iniciei minha volta à América do Sul no lombo de um javali selvagem, que tentou me assassinar enquanto eu dormia para roubar meu passaporte italiano. Fiz uma rápida parada em Cuba e apostei com Fidel que ele não conseguiria dar um mortal para trás. Claro que o velhote aceitou a aposta, e claro que perdeu. A paga foi um fusquinha velho com o qual pude concluir minha viagem de volta para casa.

Tudo isso me tomou cinco dias. Mas quando cheguei em minha toca percebi que havia esquecido as chaves no armário do clube onde me reúno todas as quintas-feiras para a saudável prática de queimar bíblias em rituais satânicos.

Fui até lá e, uma vez em posse de minhas chaves, estava a caminho de casa quando, de repente, fui atropelado por uma betoneira. Acordei em um hospital três horas mais tarde, com os médicos em alvoroço. Um deles veio a mim e disse que eu havia sofrido uma fissura no crânio, mas ninguém estava disposto a realizar a cirurgia reconstrutiva por ser considerada muito arriscada. Sem tempo a perder com aquela choradeira, peguei um grampeador, remendei a cabeça e fui embora sem pagar a conta.

Quando finalmente cheguei em casa, percebi que minha internet estava com problemas de conexão. Chamei a companhia e eles agendaram uma visita para o dia seguinte. Só apareceram mais de três meses depois. Fizeram o serviço, e aqui estou eu.

Sim, anunciem aos ventos: Braddock Lewis está de volta e preparado para ser a incômoda farpa de madeira debaixo da unha do mundo. Podem aguardar!

Retomando o fio da meada com uns posts antigos:

Uma boa ação: ajude alguém a chorar
Série (ou será uma, quando houver várias partes): Antologia do Ônibus

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Sua boa ação do dia: ajude alguém a chorar

Ontem o dia estava deveras belo, absolutamente nublado e frio como em uma geladeira industrial. Movido por essa sensação, decidi fazer um dos programas que mais me apetecem: tomar uma cerveja com petiscos. A bebida, como sempre, estava estocada em casa. Portanto, saí para comprar os comes: deliciosos picles de cabeça de bagre que a padaria Zoroastra costuma vender às terças pela tarde.

De balde cheio, vinha descendo a rua quando passei por um orelhão e vi uma moça que esperava alguém atender sua ligação. Antes mesmo de ouvir um “alô” do outro lado da linha, a infeliz já apresentava sinais de desidratação de tanto chorar. Se aquela blusa fosse torcida, seria capaz de apagar um incêndio de pequenas proporções.



(Uma deliciosa cabeça de bagre pronta para o consumo. Crédito: Aquaman)





Imediatamente parei, fulminei a referida com um olhar de reprovação e perguntei o motivo daquela perturbação da ordem pública. Ela disse, então, tratar-se de um namorado que não mais respondia suas ligações.

“Garota, eu não derramei uma lágrima sequer quando observei um incêndio consumir minha casa e abreviar a vida de minhas oito chinchilas. Trate de se controlar.” Inútil dizer que isso só a fez abrir ainda mais o berreiro. Então eu disse: “Vou lhe dar um motivo para chorar de verdade”. Arranquei-lhe o telefone da mão, bati violentamente no gancho e terminei por vê-la, em estado de absoluto estarrecimento, rolando rua abaixo abraçada a uma das minhas cabeças de bagre como se fosse a chave para a salvação da sua vida.

“Oras, mas que crueldade gratuita, que sadismo desmedido, Braddock”, devem pensar os leitores menos esclarecidos. Nada disso! Trata-se de uma atitude absolutamente sensata e justificada. Afinal, sou um homem que se mantém fiel às suas promessas.

Explico: nos idos de 1973, quando morava no interior, como celebridade (por aqueles lados, bastava saber ler o próprio nome e dividir por 2 para ser uma celebridade), fui convidado para julgar um concurso de beleza de porcos-da-Índia. Ah, vocês não sabem como os nervos afloram quando o assunto é a beleza dos porcos-da-Índia.



(Aí está Rupert, o porquinho-da-Índia, sendo treinado para a prova de talentos do concurso. Crédito: um labrador sarnento)






Não passarei por cada um dos excruciantes detalhes dos 23 dias de competição e pularei direto para o final da história, a hora do anúncio dos resultados. As donas das pobres criaturas, horas antes de começar a cerimônia, já se punham a chorar de maneira carpideira. Oras, os senhores conseguem imaginar algo mais desnecessário e irritante? Não, nem mesmo gastar R$ 500 em um corte de cabelo é tão ridículo! Por isso mesmo não poderia ter deixado aquilo passar em branco. Desde aquele maldito dia, fiz o juramento de que nunca mais deixaria alguém chorando sem um devido e merecido motivo.

Pois bem, essa é a história. Agora sumam daqui, mas não sem antes dar uma topada com o dedão em um móvel pontiagudo. E não ousem derramar uma lágrima!

> Minha autobiografia não autorizada

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Antologia do ônibus nº I

Deslizo por essa cidade fedorenta a bordo de um ônibus apinhado de almas. Amaldiçoo o motorista e desejo câncer a seus parentes mais próximos a cada vez que o miserável breca repentinamente em um ponto para colocar mais passageiros para dentro.

Sei que o sufoco terá fim em breve, pois estou bem familiarizado com o itinerário. Ao longo do caminho, aquela caixa imunda e contaminada despeja passageiros, e eis que, finalmente, vejo um banco livre. Por sorte não é daqueles lugares segregados.

Ignoro gestantes, idosos e até um senhor de muleta - eles que procurem suas malditas cotas. Ocupo o espaço sem o menor peso na consciência, e lanço ao alto um ar triunfal.

Olho pra cima e vejo uma mocinha tentando se manter em pé enquanto equilibra a duras penas uma pilha de livros e cadernos.

Vislumbro uma oportunidade de me distrair um pouco e tornar a viagem mais aprazível. Ao notar o sofrimento da coitada pergunto: "Está pesado?".

A pobre ingênua, esperando que eu me oferecesse para aliviar a terrível carga que ela suportava em seus finos braços, abre um débil sorriso, e, encarando a pergunta como uma corda que lhe havia sido lançada para puxá-la para fora do abismo, ela responde: "Já não sinto meus braços, senhor".

Retruco, então: "Para isso existem mochilas". E findo o assunto. Sinto a luz da esperança se apagar nos olhos da infeliz, e logo sua face se retorce em dor e desespero ao perceber que a corda da salvação era, na verdade, uma serpente peçonhenta dos confins da Amazônia Ocidental. Sem mais a fazer, lanço-me à complexa leitura de um gibi de "Conan, o Bárbaro", e prossigo minha jornada rumo ao centro da cidade, onde um contato me espera para passar mais informações sobre o caso que eu tinha em mãos. O caso Freitag. Quem poderia imaginar que...

CRIIIIIIINCH!

Filha da puta! O motorista brecou violentamente de novo! Vamos ver se ele consegue dirigir com uma fratura exposta no braço. Já volto.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

De volta à labuta

Com mil escorpiões marinhos!

Fui viajar no feriado e deixei o blog aos cuidados de meu escr... digo, ajudante, Ismirino.

Havia deixado milhares de posts, pérolas de sabedoria, prontos para serem postados ao longo desses dias, mas chego aqui e vejo tudo como deixei! Maldição! Garanto aos leitores desse blog que o rapaz sofrerá as consequências por esse desleixo. Ismirino!!! Venha cá!!!

- Si, chefito. Ismirino, a fagulha andante, está aqui!

Você insiste nesse título idiota? Pare já com isso e me diga onde estão as atualizações que ordenei que você fizesse em minha ausência? Deixei você encarregado de publicar minha brilhante matéria sobre a farsa da indústria do panetone. Explique-se!

- Perdón, chefinho, pero la mercadoria se extravió.

Não quero saber de desculpas. Você será punido por ter sido tão relapso! Receberá a ração sem vitamina B12.

- Piedade, chefito. Tengo anemia.

Tarde demais. E se esse erro se repetir terá que voltar a dormir sem palha no chão.

- Maldición!

O que está resmungando aí? Se continuar, nunca irá ganhar mais do que um estagiário de jornalismo. Preste bem atenção: de jornalismo!

- No chefito, por diós!!!

Ótimo, agora suma da minha frente.

Raios, isso que dá tratar bem os funcionários. Ofereça a eles regalias, como diminuir as horas extras não-remuneradas de oito para sete horas, um plano odontológico no açougue da esquina ou um aumento de 50% no salário de meio pão mofado e é isso que acontece.

Se quiser eficiência, é preciso usar de ameaças, terrorismo psicológico e sessões controladas de chibatadas na panturrilha.

Ah, sim, talvez eu deva explicar. Tenho um fiel escudeiro chamado Ismirino, como deu para perceber.

Mas a história de como esse infeliz veio parar aqui fica para a próxima.

Muito bem, vou desfazer as malas e voltarei em breve.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Sinfonia da destruição

Música não é meu forte. Você pode dizer que sou um cara insensível, mas não é bem assim. Após passar alguns anos nesse ramo os sentidos se modificam, a audição se ajusta para conseguir captar o sutil ruído de uma Magnum sendo engatilhada em meio à multidão, ou o som de um pino de granada sendo retirado atrás do balcão de um boteco imundo.

No meu carro, a única coisa que toca no rádio é a frequência policial. Meus compositores favoritos são Smith & Wesson. Deleito-me com a rajada de uma submetralhadora em fá menor. Aprecio a melodia do gorgolejar banhado em sangue de um larápio tentando, com seu último sopro de vida, fazer as pazes com Deus (está bem, essa imagem foi um pouco forte, mas essa é a realidade. Encare-a ou seja engolido por ela!).

Simplesmente perdi o ouvido para a música. Ela se reduziu a mero ruído para mim, acordes se tornaram uma massa de sons desconexos, campos harmônicos passaram a ser tão convidativos quanto campos minados.

Mas nem sempre fui assim. Em meus idos anos de juventude, eu gostava de música e almejava fazer dela meu sustento. Até estudei em conservatórios, e cheguei a ser o segundo alaudista (tocador de alaúde) da filarmônica de Varsóvia. Quando a orquestra acabou - por falta de verba e uma epidemia de cirrose que atingiu metade dos integrantes -, parti para novas vertentes.

Naquela época nascia a NWOBHM (New Wave of British Heavy Metal). Ouvi pela primeira vez as bandas que faziam parte do movimento quando uma tempestade de neve se abateu sobre meu sítio e tive de ficar seis meses preso dentro de casa. Meu único passatempo era um velho rádio movido a diesel, e com uma antena improvisada com uma caneta Bic espetada em um pedaço de queijo eu conseguia captar composições de grupos como Iron Maiden, Motörhead e Saxon flutuando nas frequências sonoras. Fiquei fascinado com aquele som, e comecei a estudar o estilo.

Montei uma banda de heavy metal chamada Os Esmigalhadores de Pão de Alho do Amanhã, que fez um grande sucesso no leste europeu.

Chegamos ao topo das paradas húngaras com o disco The Kids of the Future (Don't Wanna Have More Chicken). Nossos concertos lotavam alas de queimaduras de terceiro grau de hospitais de campanha em assentamentos israelenses; éramos aclamados pelos transeuntes nos metrôs de Nova York e batíamos recordes de gorjetas em caixas de sapato, para inveja dos músicos de rua concorrentes; chegamos até a abrir shows para renomados grupos de flautistas peruanos na Praça da República, em São Paulo.

Meu sonho de viver por meio da música estava encaminhado, mas o destino reservou outro caminho para mim, ou fui eu que escolhi a direção errada naquela fatídica quinta-feira... bem, isso não vem ao caso agora.





(Aí estão meus instrumentos musicais.
Crédito: um atabaque saxofonista)







O que quero dizer é que eu estava no ônibus um dia desses quando ouvi uma cacofonia emanando do fone de ouvido de um jovem por volta de seus 17 anos. Uma batida tribal, repetitiva, primitiva, com uma voz anasalada emitindo palavras que só poderiam ter sido achadas em algum esgoto a céu aberto. Perguntei o que raios era aquilo que ele estava ouvindo e que estava empesteando o ambiente. Ele me disse se tratar de "fânqui" (não confundam com o funk). Interessante, eu disse, então saquei minha navalha e cortei os fios do fone de ouvido do garoto, pincei-lhe o nervo do ombro e disse para ele arrumar um emprego e se tornar alguém na vida.

Fico preocupado ao ver a proliferação de músicas desse nível, que não têm nada a acrescentar à humanidade. Além desses autoproclamados MCs que denigrem o nome do estilo que lançou figuras geniais como James Brown, há ainda universitários sertanejos (que, pela qualidade que apresentam, só podem estar matriculados em alguma UniVocêÉumRetardadoMasNóisAceitaSuaGrana), bandinhas de rock juvenis que fariam Jim Morrison colocar mercúrio líquido na seringa para se poupar do sofrimento de ouvi-las, tocadores de pandeiro com seus sorrisos artificiais ou esses apertadores de botões com sua trilha sonora de fliperama. Entre outras patifarias.

A música atual está intoxicando essa geração que em breve estará à frente de uma nação cujo futuro é achar que tem um futuro. Digam-me: que tipo de cidadão sairá daí? Como os jovens vão se preparar para encarar a vida ouvindo essas músicas? Como estarão preparados para enfrentar um urso, por exemplo?

Vejo nuvens negras se formarem no horizonte. Agora com licença que vou ouvir o disco de Natal da Simone.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Efeito borboleta

Já é conhecimento de todos que não temo a dor, a morte e o sofrimento (nessa ordem). Também nunca tive medo de assalto, acidente de avião, envenenamento por gás-mostarda, pia entupida, mordida de tubarão ou ataque de rottweiler. Por isso vai parecer estranho o que tenho a dizer. Mas devo admitir que há uma única coisa capaz de  me causar certo temor neste mundo. Ou melhor, uma única criatura.

Na verdade, não se trata de medo, e sim um misto de cautela com instinto de sobrevivência. Pois quando se está frente a frente com esse animal, qualquer deslize pode significar uma morte dolorosa e um cadáver em um estado em que nem os corvos iriam querer bicar.

Trata-se de um dos seres mais abomináveis e sórdidos que existem na natureza. Com terríveis asas de couro, trazem a calamidade dos céus. Não, não falo de pterodátilos. Me refiro a outro mamífero voador.

Borboletas! Isso mesmo! Não se deixem enganar por sua pretensa fragilidade e aparência inofensiva. É justamente aí que mora o perigo. É essa a imagem que elas querem vender, de um ser pacífico e inocente, um mero disfarce para camuflar sua real natureza criminosa.

Borboletas não se valem de garras e presas como outros animais bestiais, mas sim de artifícios maléficos e meios ardilosos para propagar o caos e a destruição. São bichos demoníacos, moldados pela seleção natural para serem assassinos impiedosos.

Para compensar a ausência de mecanismos físicos de defesa, ao longo das eras as borboletas foram desenvolvendo uma mente astuta para enfrentar seus predadores naturais, como sapos, gafanhotos e fiscais da Receita Federal. Mas com o tempo o que era uma necessidade de sobrevivência despertou nessas diminutas harpias satânicas uma sede de sangue incontrolável. Aos poucos, começaram a se tornar crueis. E gostaram disso...

Maquinando métodos cada vez mais eficazes para se proteger de seus inimigos, foram se tornando mais agressivas e impiedosas. Vejam bem, borboletas não caçam para sobreviver, se alimentam apenas do pólen das flores, de lasanha congelada e tofu. Por isso precisavam encontrar uma forma de dar vazão a esses impulsos assassinos, e assim desenvolveram um comportamento sádico e uma tendência irrefreável à violência gratuita, operando planos cruéis, espalhando a dor, o sofrimento e a cólera por pura diversão.

Muitos céticos agora estarão revirando os olhos em descrença, mas apenas porque se deixam levar pelas aparências. Um pitbull, um tigre de bengala ou um dromedário, por exemplo, apresentam características que os tornam explicitamente ameaçadores: estão sempre com a barba mal feita, de óculos escuros e vestindo jaquetas de couro, passando uma imagem de maloqueiros. Contudo, diante desses animais você já sabe o que esperar. O perigo mora justamente no desconhecido. E as borboletas são mestres na arte da dissimulação e do engodo, são capazes de fazer o mais vil gênio do crime parecer tão perigoso quanto um bebê em uma incubadora.

Claro, ninguém nunca ouviu falar de um caso em que uma borboleta se arrastou para fora de um beco escuro e estraçalhou um adulto de médio porte, mas eu não ligo para estatísticas. Até porque esse animal sórdido, dotado de uma mente fria e traiçoeira, jamais se deixaria ser pego tão facilmente.

Alguém já parou para pensar em quantos acidentes de carro devem ter sido provocados por borboletas e nunca provados? Ela entra pela janela e fica se debatendo na frente do motorista até ele perder a direção. Escapa, então, pelo vidro e vai sugar o néctar de alguma flor, triunfante, enquanto o automóvel arde em chamas no fundo de um fiorde.



(Mais uma vítima de um ataque implacável de borboletas. Crédito: um índio de bobeira)







Devo então citar a famosa frase: o bater de asas de uma borboleta pode causar um furacão do outro lado do planeta. Aí está! O criador dessa máxima obviamente estava tentando alertar o mundo sobre os perigos que esses demônios multicolores representam à humanidade. Com certeza o coitado pagou por isso com a vida, numa queima de arquivo à moda de traficantes de drogas, só que com muito mais requintes de crueldade e piadas ofensivas sobre a mãe da vítima (borboletas adoram humilhar e xingar a mãe). As borboletas não perdoam aqueles que tentam expor seu reinado invisível de terror.

Sim, elas vivem num mundo paralelo, tramando nas sombras, interferindo nos rumos da sociedade, mudando o curso da História, manobrando golpes de estado, derrubando dinastias, afundando embarcações no estreito de Gibraltar, disseminando a peste, a fome e a miséria, criando perfis fake no Facebook para espalhar mentiras e semear a discórdia.

Garanto que se o mundo abrisse os olhos para essa verdade incontestável muitas coisas passariam a fazer sentido. Vejam bem, conduzindo investigações sob esse novo escopo, muitos crimes não resolvidos poderiam finalmente ser solucionados.

Não me surpreenderia encontrar indícios da participação de borboletas, por exemplo, no famigerado Incidente Dyatlov. Para quem não sabe, vou contar do que se trata: nove alpinistas morreram nos montes Urais, na Rússia, em 1959, em circunstâncias que permanecem até hoje sem explicação. Segundo as investigações da época, alguma coisa fez os esquiadores rasgarem suas barracas de dentro para fora e fugirem desesperadamente sob forte nevasca. Os corpos foram encontrados dias depois. Duas vítimas tiveram o crânio esmagado, duas tiveram costelas partidas e outra estava sem a língua. Apesar disso, não havia sinais de luta e nem ferimentos externos. Autoridades atribuíram as mortes a uma "força incontrolável desconhecida". Restam apenas especulações sobre o que pode ter acontecido naquela fatídica expedição.

Percebem a trama? Que outra criatura seria capaz de causar um dano tão grande sem deixar vestígios? Um urso jamais fugiria sem deixar pegadas na neve ou galhos retorcidos; tribos selvagens também não teriam conseguido apagar todas as marcas. Nem mesmo alienígenas, que também entraram na lista de prováveis suspeitos, teriam tamanha frieza, sem contar que todos sabem que alienígenas preferem muito mais circular por Nova York, ou alguém em sã consciência realmente acha que eles iriam preferir ficar congelando o saco num frio de -30ºC no meio do fim do mundo quando poderiam estar batendo um dogão no Central Park ou tirando onda na Times Square?




(Aliens dão um rolê pelo Central Park. Crédito: Ellen Ripley) 



Eu estive envolvido no caso, e levantei a ideia, à época, que deveríamos procurar por colônias de borboletas nas redondezas. Obviamente fui chacoteado e terminei afastado do serviço, pois julgaram que eu estava começando a ter alucinações devido ao estresse. Admito, a versão que dei para o sumiço do bolo da geladeira da companhia uma outra vez havia sido meio fantasiosa, mas daquela vez eu estava falando sério.

Falar a verdade, contudo, tem seu preço. Alguém de dentro me dedurou, e, quando descobriram que eu sabia sobre sua real natureza, as borboletas passaram a me ver como uma ameaça, e desde então elas tentam me eliminar. Outro dia eu andava tranquilamente pela rua quando um andaime despencou sobre mim, mas por pouco desviei. Pude ver, ao longe, um par de asas flapeando para longe dali.

Portanto, da próxima vez que você ver uma borboleta, pense duas vezes antes de deixá-la pousar no seu ombro para dar sorte, pois você poderá morrer para sempre (Ou até sua família realizar um ritual satânico para ressuscitá-lo, mas aí você terá que aguentar a encheção de saco do seu pai dizendo como você só dá trabalho e não ajuda nos afazeres da casa, e você não ia querer isso, não é?).

Enfim, cuidado com borboletas. E tobogãs. Nunca confie em tobogãs, esses trapaceiros.

... Espere, que barulho foi esse?

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A trilogia de Braddock Lewis: Braddock Begins; Braddock Rises; Braddock Crusoé
Futebol, esporte Maldito (Ou: Pelo fim do pênalti)



sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pelo fim do pênalti e o início de uma nova era no futebol (sem pênalti, não sei se ficou claro)

Braddock Lewis não tem credo, religião, raça, cor, espécie, filiação partidária ou time de futebol.

Assim como muitos brasileiros e bolivianos clandestinos, moro no Brasil, uma nação que se orgulha de ter inventado a feijoada, de ter se apropriado indevidamente da patente do chinelo de dedo e de ter o tal "pé na bola" grudado ao cotidiano como uma infecção subcutânea crônica.

Logo que aqui cheguei vindo das longínquas enseadas normandas, remando um caiaque furado, fui apresentado a tal esporte, e devo dizer que ele me empolgou tanto quanto observar musgo crescer nas pedras da praia. Jamais vi a graça em assistir por horas a um bando de incompetentes tentando acertar um chute a um alvo do tamanho de uma porta de celeiro - e falhando miseravelmente mesmo estando a dois centímetros de distância.

Aliás, sempre achei uma total imbecilidade como as pessoas idolatram jogadores de futebol por conseguirem executar minimamente bem os fundamentos do esporte que eles praticaram a vida inteira. Oras, é justamente isso que se espera de um profissional: que ele execute bem a tarefa à qual se propõe. Seria algo semelhante a louvar um carpinteiro por conseguir martelar um prego com eficácia.

Como um forasteiro, ao mesmo tempo em que eu conhecia o esporte mais popular desta terra, também me familiarizava com as práticas e costumes do povo. E não pude deixar de notar como há muito do futebol no cotidiano e muito do cotidiano no futebol. A forma como o jogo é jogado, as práticas e costumes dentro das quatro linhas, se refletem e se espelham nas práticas e costumes da população que o abraça como uma religião.

- Onde você quer chegar, Braddock? - pergunta um leitor impaciente. Acalme-se, porra, vou explicar. Tenho o espaço que quiser, isso é um blog, não um maldito jornal de notícias imobiliárias distribuído gratuitamente na porta do metrô.

Falo, é claro, da malandragem, da dissimulação, da falsidade, da calhordice, da pusilanimidade que permeiam a modalidade. Para ilustrar, vou tomar como ponto de análise a mania mais insuportável do jogo: a simulação de faltas. O futebol por aqui é praticamente um misto de arte cênica com apresentação circense, com uma porcentagem ínfima de atleticismo e uma dose quase nula de espírito competitivo.

Para começar, não há nada mais constrangedor do que ver marmanjos se contorcendo, rolando e fingindo uma dor lancinante, berrando feito crianças, por causa de um raspão no pelo da canela esquerda. Para servir de comparativo, certa vez testemunhei uma garotinha de sete anos ter uma perna decepada em um ataque de uma gangue de javalis a uma pequena vila aos pés das montanhas do Caralhistão. Isso sim seria motivo para choro, mas acha que ela ficou reclamando com o árbitro? Não! Ela levantou sem sequer retorcer o rosto de dor e retomou seus afazeres normalmente.

Essa prática abre feridas muito mais profundas do que aparenta. Ela fere a essência do esporte. A competição esportiva se sustenta sobre atributos como força, destreza, agilidade, astúcia, inteligência, perspicácia, sagacidade, competitividade, solubilidade e criatividade. O cai-cai substitui todos esses atributos admiráveis do engenho humano pela mais pura, cretina e traiçoeira malandragem. Em vez de tentar resolver a disputa por meio de qualidades atléticas, esses covardes de chuteiras tentam empurrar para o árbitro a todo momento a responsabilidade. Com isso, substitui-se o duelo franco por um confronto evasivo, cheio de subterfúgios, dissimulado, pusilânime, esvaziando ou deturpando completamente o sentido da competição.

Dizem que o esporte é uma metáfora da guerra. Ora, nunca vi um combate em que soldados fingem ser baleados e esperam um árbitro aparecer para dar a eles o direito de um tiro livre na cabeça do inimigo. E olhem que já estive em 14 dezenas de conflitos militares só no primeiro trimestre desse ano.

Acredito, porém, que o esporte possa ser um instrumento de educação. Não a toa alguns países mais avançados do mundo têm como preferência nacional modalidades muito mais complexas e desafiadoras, como salto ornamental de penhascos, esgrima com serra elétrica, pólo aquático em tanque de tubarões ou curling. Todos esportes que constroem o caráter e forjam um espírito guerreiro.

Como eu disse, a prática esportiva, mais que mero entretenimento, acaba por emitir padrões de comportamento e conduta para fora da arena. Ela dá exemplos de como se jogar o próprio jogo da vida. Por isso, é preciso pensar na mensagem que o futebol está passando. Cavar falta a torto e a direito é uma demonstração de fraqueza, é se encolher diante da missão dada, é se acovardar diante do desafio em vez de encará-lo de frente, de peito aberto.

- Ah, Braddock, mas você não está exagerando?

Não.

- Ah, mas há muitos jogadores que são cai-cai mas também fazem coisas incríveis com a bola.

Contra esse argumento tão sólido quanto um biscoito de polvilho, tenho apenas uma coisa a dizer: vá para o inferno.

- Mas Braddock, por que... - BANG! BANG! BANG!

- GAH!

Chega de interrupções.

O que incomoda mais é ver que ninguém condena veementemente essa atitude. Claro, alguns fazem uma crítica de leve aqui e ali, mas fica por isso mesmo. Logo abandonam a questão, mudam de assunto. Ninguém, nem aqueles que ganham a vida bradando comentários imbecis sobre o futebol, nunca se mostrou de fato indignado e nem cobrou enfaticamente uma mudança de postura.

Alguns enxergam a simulação como algo inerente ao esporte, dizem que faz parte, até acham legal essa "malandragem". Não me admira essa mentalidade. Os que endossam essas atitudes são os mesmos que amanhã estarão sanitizando banheiros de rodoviárias com a própria escova de dentes para sobreviver - ou apresentando algum programa esportivo na TV, muito mais ridículo.

Muitos esportes sofrem modificações nas regras de tempos em tempos. O futebol deveria se espelhar em outras modalidades que evoluíram ao longo dos anos. Vejam o basquete, que passou a premiar com uma chance de obter mais pontos aquele que, mesmo sofrendo uma falta, luta até o fim para concluir a jogada e fazer a cesta. Vejam o badminton, em que os competidores abdicaram do uso de máscaras protetoras e aceitam de bom grado o risco de serem cegados por um golpe de peteca. Veja a natação, que agora coloca piranhas na piscina para obrigar os nadadores a buscarem mais do que uma medalha, mas a própria sobrevivência (é mais interessante ainda quando os nadadores só descobrirem a presença dos peixes assassinos na hora em que saltam do bloco). Vejam o golfe... Não, golfe não. Golfe é uma merda.

Para isso estou aqui! Movido pela indignação, elaborei uma tese em que traço um paralelo entre a forma como o futebol é praticado com o caráter nacional. Essa análise gerou um livro brilhante, chamado “Futebol: o Ópio do Povo – Como um jogo idiota moldou o espírito de uma nação sem dignidade... E outras histórias (que não estão neste livro)”.

Esta obra, obviamente, jamais viu a luz do dia. As editoras que procurei se negaram a publicá-la. Todas temiam ser invadidas por uma multidão ensandecida armada com tochas e ancinhos.

Mas enfim, neste trabalho proponho transformações profundas para o futebol reencontrar a dignidade e voltar a ser um modelo de moral, fibra, perseverança e probidade administrativa. Primeiramente é preciso eliminar os fracos e preservar aqueles que reúnem características adequadas para fortalecer o caráter do jogo.

Por onde começar? Ora, pelo símbolo máximo da estupidez no futebol. Vínhamos falando da simulação de faltas. Pois bem, a falta capital do futebol é o pênalti. E é por aí que começo o ataque. No capítulo "A Marca dos Fracos", exponho como o pênalti se tornou um câncer que corrompe o espírito do jogo, sendo usado como uma brecha para atingir o objetivo – o gol – pelo mínimo esforço.

O pênalti é o anticlímax. É o catalisador da patifaria. Ele canaliza todas as energias para um ato deliberado de calhordice, prometendo sucesso fácil a custa de pouco esforço. Assim que finalmente consegue pisar na grande área, o atacante não procura suplantar as investidas dos adversários a todo custo por meio de suas habilidades e estufar as redes inimigas. Não: ele abandona a postura combativa e simplesmente espera o melhor momento para se atirar ao chão como um saco de adubo arremessado para fora de um trator em movimento, na esperança sórdida de ludibriar o árbitro e ter seu trabalho facilitado.

Prático, sim, mas eu pergunto: onde está a honra de sentir o gosto do sangue na boca ou o calor de uma hemorragia interna ao alcançar um objetivo a duras penas?

Eu digo onde ela está! A honra está longe daqui, assistindo a um franco duelo entre homem e animal em um emocionante campeonato de arremesso de atum na Nova Zelândia!

É essa a mensagem que o futebol passa: não é preciso se esforçar até o fim para obter êxito em uma empreitada, apenas atire-se ao chão e tudo será mais fácil.

A cavocada de pênalti é uma metáfora do famoso jeitinho nacionalesco. É a gasolina adulterada, o cheque voador, o pastel de vento, a obra sem alvará, o gato na fiação elétrica, a camuflagem dos índices de desemprego pela criação de postos de trabalho mal remunerados (e que não me apareça aqui nenhum agente federal disfarçado, pois serão todos expulsos a pontapés no fígado).

Esse mal deve ser extirpado do jogo. E como? Minha proposta é simples: a grande área deve se tornar uma zona neutra, em que seja válido qualquer contato físico, por mais brutal que seja.

Dentro da área, deve valer tudo para parar o adversário, até voadora na laringe. E o atacante precisará se manter de pé a qualquer custo, pois ninguém ligará para seus gritos de dor quando lhe derem com um pé de cabra no tendão de Aquiles. A mensagem é clara: se quer a vitória, lute até o fim. Serve para o futebol. Serve para a vida. Serve para o último chefão de "Resident Evil 14 - o Zumbi Malvado", para minigame.

E, claro, será preciso regular as expressões futebolísticas para a nova realidade. A famosa frase "caiu na área é pênalti" deverá ser substituída por algo mais singelo, como: "caiu na área leva bica no rim até mijar sangue".

Neste exato momento estou encaminhando à Fifa (por fax) uma cópia de meu livro, acompanhado de um telegrama em que sugiro (imponho sob graves ameaças) a revisão das regras em vigor.

Outro dia voltarei para defender a criação de uma lei que obrigue os motoboys a andarem de moto sem capacete.

Até lá.

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Ah, você não sabe quem sou eu? Puxe uma cadeira, sente no chão e ouça com atenção
Batismo de fogo
O Dia em que me propus a ler "Crepúsculo"
O caso Freitag: O Início

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O dia em que me propus a ler "Crepúsculo"

Jamais, repito, jamais compre pastilhas de freio usadas de um guaxinim que use suspensório. Sim, como devem ter adivinhado, o breque de meu carro quebrou e precisei abrir um buraco no assoalho para frear à moda Fred Flintstone. Não se pode mais confiar em ninguém este mundo! Ninguém!

Bem, depois de esfoliar os pés no asfalto dessa cidade asquerosa, finalmente cheguei em casa. E se querem saber por que me demorei em aparecer, explico. Estive ausente durante esses dias pois estava envolvido com um serviço urgente. Nada demais, apenas resolver um caso de sonegação fiscal na Mineradora Sete Anões. Aqueles pivetes deram trabalho, mas tiveram o que mereceram e vão deixar as barbas de molho atrás das grades por um bom tempo. Isso resolvido, posso, enfim, dedicar a devida atenção a este blog.

E hoje trago um assunto muito pertinente e atual, como sempre aliás. Venho aqui para falar dessa mania que invadiu a literatura, a TV, o cinema, a Cracolândia, a padaria e até mesmo o bingo dominical das casas de repouso. Sim, falo do crescimento demográfico de mortos-vivos habitando o imaginário coletivo. Me refiro obviamente a esses zumbis e vampiros bons, maus, românticos, tímidos, extrovertidos, carnívoros, vegetarianos, veganos, budistas, não importa. Há todos os tipos, personalidades, profissões, cores e credos.

É preciso observar que, com isso, vêm à ordem do dia a reflexão sobre temas caros a vocês, humanos, como mortalidade, existencialismo, filosofia greco-australiana, avanços científicos na área da saúde e a migração de gansos selvagens no inverno.

A que se deve esse crescente interesse nesses assuntos (sobretudo no que se refere aos gansos)? Seria um sinal da angústia dos tempos modernos, em que a velocidade dos acontecimentos se contrapõe à brevidade da vida, gerando assim uma compreensão da trágica condição humana perante a inexorável roda do tempo? Seria uma válvula de escape à tomada de consciência do delicado equilíbrio traçado pelos avanços tecnológicos, que ao mesmo tempo nos protegem e nos ameaçam, expondo nossa fragilidade diante da força do mundo? Seria uma resposta inconsciente à noção do paradoxo existencial pós-moderno, em que tudo que é sólido desmancha no ar? Seria uma tomada de postura niilista ante às estruturas psico-político-sócio-economicistas vigentes? Ou mero entretenimento alimentado pela mais absoluta falta do que fazer mesmo?

Para investigar esse fenômeno cultural mais a fundo, eu, Braddock Lewis, fui atrás da origem! Tudo começou há alguns anos, com um livro que causou histeria coletiva entre os adolescentes e até mesmo alguns adultos. Não, não é o "Manual ilustrado do Kama Sutra, by Justin Bieber". Refiro-me ao tal de “Crepúsculo”. Obviamente, isso não passaria incólume pelo olhar atento de Braddock Lewis, o fiapo de manga entre os molares da sociedade. Por isso, decidi fazer uma profunda análise dessa obra patética.


(Legenda ao estilo Folha de S. Paulo: mão segurando uma maçã em um fundo preto e com um título em cima)

“Mas o senhor, por acaso, leu o livro?”, quer saber um indignado leitor com o cérebro intoxicado de tanto usar tintura nos cabelos para deixá-los negros como os de um vampiro. Ora, mas é claro que não! Tenho mais o que fazer. Desde quando preciso ler um livro para tomar conhecimento de seu conteúdo? Acaso os sunitas perguntaram se eu havia tomado café da manhã antes de atearem fogo à minha choupana? Não! Pois digo, de uma vez por todas: não li e não gostei!

A verdade é que até peguei o livro para ver do que se tratava. No entanto, assim que o abri e comecei a correr os olhos pela primeira linha, as palavras começaram a se mover, desesperadas, tentando escapar da minha visão incandescente.

A página acabou pegando fogo, e as palavras tiveram de pular para fora do livro para escaparem com vida. Elas foram buscar abrigo em um exemplar da obra “Prolegômenos a Toda Metafísica Futura”, que estava esquecida em minha estante. O que houve ali foi uma cena brutal: as palavras começaram e se digladiar umas com as outras.

Foi uma confusão. “Edward” tentava apunhalar o “imperativo categórico”, enquanto “vontade legisladora” buscava aplicar uma chave de braço em “Bella”. Por fim, "moral empírica" e suas aliadas encurralaram as palavras de “Crepúsculo” no limite da folha e empurraram todas para a contracapa. Foi então que "Immanuel Kant" apareceu, pegou o “1” de "ano da publicação: 1934", fez um arpão, e terminou por destrinchar os verbetes invasores.

Assim, as palavras de “Prolegômenos” saíram vitoriosas, pegaram as letras adversárias como espólio de batalha e criaram um novo apêndice. E eu fui fazer um sanduíche. Peguei duas fatias de mortadela, uma folha de alface americana... ops, tergiversei.




(Eis aí o que sobrou de minha estante. Crédito: Ismirino, a fagulha andante)







Pois bem, movido por um certo senso de justiça e um respingo de sadismo, me propus a, pelo menos, assistir a uma das películas de "Crepúsculo". Eu estava a caminho da locadora quando, no caminho, notei uma formiga caminhando pela calçada. Por uma questão de prioridades, pus-me a segui-la, e acabei esquecendo do que ia fazer. Então acabei desistindo de alugar o filme. E essa é a análise mais honesta que você lerá sobre "Crepúsculo".

Agora com licença que preciso trocar a sola de meu sapato e assistir ao último capítulo da temporada de The Walking Dead.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Fui ver "Os Mercenários"... E consegui!

Crítica publicado no jornal A Gazeta Grunhidora, em 2/2/2010. Por que publiquei só agora? Em primeiro lugar, não é da sua conta, palhaço. Em segundo lugar, porque eu quis.

Fui assistir a “Os Mercenários”. Sim, exatamente, aquele filme com o Silvestre Stalongue. Era um terrível sábado de sol, e resolvi deixar meu escritório empoeirado por um segundo enquanto Ismirino, meu fiel escudeiro, realizava a faxina semanal.

Havia muito tempo eu não imergia em uma sala escura e me deixava seduzir pela magia de um projetor de imagens na telona, então lá fui eu. Dirigi-me ao Cine Tonhão, na região central de Maldito Paulo (de santo essa cidade nojenta não tem nada). Mas, qual não foi minha surpresa ao descobrir que um incêndio havia consumido o prédio em 1975?

Perguntei então a um mendigo que passou a dormir naquele local abandonado onde eu poderia encontrar um cinematógrafo. Ele não sabia do que eu estava falando. Foi então que percebi que muita coisa devia ter mudado desde a última vez em que fui a uma sessão. Ah, a estréia de “Cidadão Kane”, que obra prima.


(- Essa não, estamos cercados por um batalhão armado até os dentes, e tudo o que temos para nos defender é essa lanterninha!
- Maldição, devíamos ter chamado Braddock Lewis!)

Andei por muito tempo até finalmente chegar a uma grande construção, com altas colunas, arcos, córdobas e poncius-pilatus. Era um desses malditos antros da modernidade e da aglomeração de tipinhos toscos. Sim, era um shopping. Descobri que havia um cinema no último andar e, então, subi por meio de um artefato muito engenhoso, chamado escada-rolante.

Chegando à bilheteria, uma fila monumental se extendia à minha frente, que descia as escadas, formava um caracol, pegava o elevador, subia pelas paredes, entrava na tubulação, pedia um sanduba no Burger King e lia um livro na Saraiva.

Nunca peguei uma fila em minha vida, e não seria aquela a primeira vez. Fiquei ao lado do vendedor e esperei alguém comprar um ingresso para “Os Mercenários”. O primeiro pediu para a sessão dublada, então apenas apliquei-lhe uma rasteira para que rolasse abaixo pela rampa de acesso a deficientes. O segundo comprou para a sessão que eu queria, então extraí-lhe o bilhete com um rápido movimento de mãos e um esguicho de desodorante em spray nos olhos.


(Sempre tem um cabeçudo para tapar a visão. Mas quem diabos usa um chapéu no cinema? Crédito da foto: Chapeleiro Maluco)



Entrei na sala, expulsei um simpático casal de adolescentes e ocupei duas poltronas para aguardar confortavelmente o início do filme. Foi então que vi algo que me fez rir pela primeira vez em 37 anos. À medida que se aproximava o início do longa, notei que o público que começava a entrar na sala era praticamente constituído por figuras que você só encontra em academias e em lojas de suplemento alimentar.

Eram vários tipos com camisas coladas, regatas, tatuados, cabelo em corte militar ou lambuzado em gel, aquele tipo de metrossexual enrustido ou praticantes de jiu jitsu. Todos, presumi, estavam ali para ver quantos supinos ainda precisariam fazer e quantas claras de ovo precisariam comer para se assemelharem com os atores que apareceriam na telona.

A certa altura, minha risada comedida adquiriu certo grau de histeria diante daquela invasão de aspirantes a Mister Universo da Penha, a ponto de eu não conseguir me conter, levantar, me dirigir a um daqueles patifes, apontar para a cara dele e expelir uma gargalhada descontrolada.

Resumindo a história, alguns desses jovens vieram para cima de mim revoltados. Como eu estava em menor número, precisei chamar dois amigos meus que nunca me deixam na mão: meu punho direito e meu cotovelo esquerdo. Sim, aqui estou eu sem um arranhão. Quanto ao filme, aí vai a única crítica que vale a pena ser lida: é legal.

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terça-feira, 23 de abril de 2013

Onde os fracos não têm vez - Parte 1: a primeira parte

A chuva encharca meus sapatos e seca minhas ideias. A aba de meu chapéu  impede que as gotas apaguem meu cigarro de palha. Caminho pelas ruas tentando desviar das poças d'água no chão. A noite acaba de mergulhar em sua hora mais sinistra, entre 23h38 e 00h17. Um sentimento me incomoda e faz gelar a espinha: minhas meias estão úmidas. Preciso lembrar de trocar a fita crepe na sola do meu sapato.

Tinha mais um caso em mãos. Mais um, como tantos outros. Mas desta vez era diferente. Desta vez os eventos eram mais obscuros. As conexões aparentes se revelavam falsas, num sinistro jogo de ilusão e sombras que ameaçava abalar minha própria fé na razão.

Eu havia chegado a um beco sem saída. Não estou falando metaforicamente: virei à esquerda e dei de cara com um muro. Uns tipos estranhos jogavam dominó nas sombras. Almas perdidas na noite. Eu podia ter acabado como um deles, mas fui mais esperto e abandonei a faculdade de jornalismo logo no primeiro ano.

Dou meia volta e aperto o passo em direção ao Bar do Tobias. Preciso de um drinque para lubrificar as ideias. Logo avisto o sinal de neon do estabelecimento como um farol na escuridão, tingindo a fina bruma da noite de um roxo-beterraba-dos-ventos. Assim que entro pela porta giratória, Isaías, o chapeiro, começa a salgar um belo pedaço de coxão-petrificado que tanto aprecio. "Hoje não, Dois Canos (não me perguntem o motivo do apelido dele. Sério, não insistam, vocês não vão querer saber). Preciso só de um engasga-gato", me apresso a dizer, tomando um lugar no balcão.

Isaías, o Dois Canos, me traz uma cachaça artesanal, destilada nos porões do próprio bar. A primeira dose desce como um chute de coturno na boca do estômago. A segunda é suave como afago de amante.

A bebida enxágua o raciocínio, lavando cenas da memória, até que volto ao início de tudo. Me vejo de volta àquela noite, deitado em meu sofá surrado, pensando em como pagaria o aluguel do mês, quando ela entrou pela minha porta como uma borboleta que adentra uma caverna habitada por um rinoceronte raivoso. Aquela mulher, emanando a vibrante beleza da meia-idade, de quem ainda tenta se agarrar desesperadamente ao viço da juventude, mas já com o aroma pungente e a textura macia de uma fruta amadurecida. Ainda lembro das primeiras palavras que ela disse ao entrar em meu escritório: "meu Deus, que cheiro é esse?". E então colocou em minhas mãos aquele bilhete com uma mensagem póstuma de um homem morto. Aquele pedaço de papel era a chave de tudo, mas onde estaria a porta que ela destrancaria?

Algo terrível estava prestes a acontecer, mas ali eu era apenas um peão no tabuleiro de um jogo de xadrez entre um texugo e uma doninha.

Esse caso está ameaçando sair do controle. Nunca haviam tentado me matar tantas vezes na mesma semana desde que fui presidente do clube de bocha no ano em que o time foi rebaixado à terceira divisão estadual.

Os fios dos fatos teciam um nó em minha mente. Essa situação me deixa nervoso. Nesse ramo, é preciso ter cuidado. É como diz o ditado: se você não sabe quem é o alvo, é porque o alvo é você.

Mais um gole. O estresse começa a se dissipar, mas me pergunto até quando minha úlcera aguentará afogar minhas preocupações com destilados. Penso se não é hora de voltar a me consultar com minha psicóloga. Nunca mais a vi desde aquele dia em que ela teve aquela crise de choro no meio de uma sessão. Eu avisei que ela não iria gostar de ouvir sobre minha viagem à Tanzânia.

De repente, um barulho chama minha atenção como apenas o som do aço rompendo fibras de carne humana é capaz de fazer.

Virei rapidamente, e então vi...

PLIM!

Ops, o micro-ondas! Minha torta de azulejo está pronta.

Leia mais:
Minha auto-biografia pessoal não autorizada
Quem sou eu? Isso não é da sua conta, palhaço!

terça-feira, 16 de abril de 2013

Se quer algo bem feito, faça você mesmo

Outro dia, no ônibus, pensei em alguns títulos para minha autobiografia pessoal não-autorizada. Em breve nas melhores padarias do bairro.

Braddock Lewis - Vida e obra

Braddock Lewis - Vida, obra e morte

Braddock Lewis - Vida, obra, morte e ressurreição

Braddock Lewis - Vida, obra, morte, ressurreição, vida, ferida mortal, melhora, doença rara, morte, morte, ressurreição, morte, vida, viagem de férias, morte de novo, semi-ressurreição, Morte e Vida Severina

Braddock Lewis - Toda a vida e obra em verso

Braddock Lewis - Vida em verso, obra em prosa

Braddock Lewis - Fatos e histórias nunca antes narrados em livro

Braddock Lewis - Tudo aquilo que você ouviu por aí, agora em livro

Braddock Lewis - Psicografado Pelo Espírito de André Luís

Braddock Lewis - Psicografado Pelo Espírito do Próprio Braddock Lewis Após o Espírito de André Luis Levar uma Voadora na Garganta para Aprender a Não se Meter Onde Não é Chamado

Braddock Lewis - O Último Rei-filósofo

Braddock Lewis - Tudo sobre a vida do homem que mudou o planeta

Braddock Lewis - Tudo sobre a vida do homem que mudou o planeta depois da bomba de hidrogênio

Braddock Lewis - Tudo sobre a bomba de hidrogênio: procedimentos de montagem, operação e desarme

Braddock Lewis - A Sociedade da bomba de hidrogênio

Braddock Lewis - O homem que viveu até o fim da vida

Braddock Lewis - Dia 28/07/1994, das 11h02min às 11h03min

Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca de pão...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca de pão da Tramontina

Braddock Lewis - A história de um homem que odiava esquilos

Braddock Lewis - A história de um homem que nunca mudou de ideia

Braddock Lewis - A história de um homem que às vezes mudava de ideia

Braddock Lewis - A história de um homem e seu amigo esquilo

Braddock Lewis - Aforismos em Dó bemol

Braddock Lewis - Aforismos em Si Meio Diminuto Com Sétima Aumentada

Braddock Lewis - O Dia em que Quebrei a Perna Jogando Pólo Aquático

Braddock Lewis - Ontologia Indecifrável

Braddock Lewis - Apocalipse Now

Braddock Lewis - (por motivos legais, esse livro não pode se chamar) Apocalipse Now!

Braddock Lewis - O Livro

Braddock Lewis - O Filme

Braddock Lewis - O Programa de Rádio

Braddock Lewis - O Teatro de Fantoches

Braddock Lewis - Especial de Natal

Braddock Lewis - Especial de Páscoa

Braddock Lewis - Especial de Proclamação da República

Braddock Lewis - Especial de Dia do Caixeiro Viajante

Braddock Lewis - Quem Mexeu no Meu Queijo?

Braddock Lewis - Quem Mexeu no Meu Queijo? Foi Você, Não Foi? Confesse, Verme! Não, Piedade, Eu Estava Com Fome! Pare de Chorar e Coloque a Mão Sobre a Mesa! Não, Por Favor, eu Preciso da Minha Mão Para Sobreviver, Sou Pianista da Filarmônica de Berlim! Devia Ter Pensado Nisso Antes de Sair Pegando o Queijo dos Outros! Não, Não, a Faca de Pão Não, NÃÃÃÃ...

Braddock Lewis - 50 Tons de Lewis

Braddock Lewis - O Homem, a Lenda, o Mito

Braddock Lewis - O Assistente Social, o Pai de Família, o Jagunço Mercenário

Braddock Lewis - O Eletricista, o Mestre de Obras, o Revendedor de Automóveis Semi-usados

Braddock Lewis - A volta ao mundo em 80 dias úteis

Braddock Lewis - A volta ao quarteirão em 80 passadas largas

Braddock Lewis - O começo de uma era

Braddock Lewis - O fim de uma era

Braddock Lewis - O começo do fim de uma era

Era O Braddock de Fim - Começo do Lewis uma (Uma Autobiografia Neo-concretista)

Braddock Lewis - A Inauguração do Pré-Moderno Pós-Socrático

Braddock Lewis - O Surgimento do Intra-Aristotélico Extra-Contemporâneo

Braddock Lewis - A Criação do Sub-Futurista  Pluri-Kantiano

Braddock Lewis - Uma História Tão Incrível que um Título não é Necessário

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência à Pós-Modernidade

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência à Pós-Modernidade de volta à Alvorada passando pela Decadência meia-hora depois da Pós-Modernidade ser atingida no ombro pela faca de hidrogênio

Braddock Lewis - A Biograf... Vão Procurar o Que Fazer Em Vez de Ficar Bisbilhotando a Vida Alheia, Bando de Desocupados

Braddock Lewis - A autobiografia pessoal não-autorizada

Aí estão. E quero deixar bem claro que, quando fizerem um filme sobre mim, não deixarei que meu papel seja interpretado pelo Adam Sandler. Jamais! Vou até mesmo escrever uma carta para ele agora mesmo, para que ele não venha me encher o saco depois.

Leia mais:
Chegou agora? Puxe uma cadeira, sente-se no chão e permita-me me apresentar a mim mesmo
A máquina de escrever

terça-feira, 9 de abril de 2013

A máquina de escrever

Resolvi limpar um armário antigo que uso para guardar tranqueiras. Em meio àquela bagunça, encontro minha velha máquina de escrever debaixo de uma pilha de papéis envelhecidos. Puxo pela alça e seu peso afunda no ar. Suas engrenagens rangem, atrofiadas pelo confinamento.

Testo o teclado. Ainda há um resquício de tinta. Coloco papel no rolo. A página em branco espera para ser violada. Arrisco um texto.

TEC. O som da criação literária não é orgânico e melífluo, mas uma sucessão tartamuda e mecânica de TEC-TE-TEC-TEC-TE-TECs.

Pele e cobre trocam estímulos. Os tipos emperram. Se exigir demais deles, encavalam. Resistem. Se recusam a acompanhar a velocidade do pensamento. Até que cedem. Os dedos afundam vários centímetros, dissipam a névoa da criatividade. As letras grudam no papel. Que diferença para um teclado de computador, que faz “POC”, e não “TEC”.

É preciso domar a máquina, fazê-la me obedecer. Ela esconde segredos. Procuro o “caps lock” para acionar caixa alta. Não é tão simples, descubro. É preciso conhecer uma coreografia de dedos para se escrever com letra maiúscula.

Assim os monges datiloscopistas faziam: falange do indicador sobre o carpo do anelar com a mão esquerda na terceira casa da quarta fileira de trás pra frente em dó bemol menor a sete graus noroeste às 13h do solstício de inverno. Ou isso, ou pode-se acionar a alavanca de maiúsculas e o fixador – mas, aí, qual a graça? Os dedos doem a cada investida contra o teclado, os músculos da mão começam a enrijecer, mas continuo. Escrever é penoso.

Penso que seria mais fácil bater nas teclas utilizando martelo e cinzel, mas não acho a caixa de ferramentas. Tem que ser no braço mesmo.





(Aí está a máquina que uso para escrever este blog. Crédito da foto: Louis Daguerre)



A luta é injusta. Máquina contra o escritor, munido apenas do material frágil das ideias. É aço contra éter.

Os arames da linguagem se retorcem. A imaginação emana do ferro, emergindo na alva superfície do papel, que será cuspido para fora das vísceras metálicas tão logo termine de ser contaminado pelas palavras.

As letras começam a secar. A tinta da máquina vai chegando ao fim. A linguagem murcha. A imaginação estanca. Retiro o papel do rolo e leio o que criei até então. A história conta de um rei cujos filhos foram mortos em batalha e que agora vê seu reino, sem sucessores, próximo à extinção.

Mas onde está o desfecho? Como termina o conto? Será que o sobrinho-neto-meio-irmão do tio-avô do rei que regressou depois de dado por morto assumiria o trono? Ou o vizinho-primo-enteado do amigo de infância do grão-vizir daria o golpe de Estado? Quem contará o final da história ao autor?

O fio de Ariadne se rompe, e o escritor se vê sozinho com sua pena, perdido em meio ao labirinto. E eis que... MALDIÇÃO!!! ACABOU A ENERGIA ELÉTRIC....................................

Leia mais:
Braddock Rises
Relatos do passado

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Batismo de fogo

Tenho um nome a honrar e uma reputação a zelar, mesmo que para isso eu precise lançar mão de medidas pouco louváveis (do ponto de vista de um escoteiro-mirim-cristão-defensor-dos-direitos-humanos-vegano-virgem). Você sabe, se deixar que manchem seu nome uma vez, precisará mais do que uma boa esfregada para limpá-lo. E Braddock Lewis não é um nome que possa ser desrespeitado sem despertar vingança sanguinolenta.

Não nasci Braddock Lewis. Tornei-me Braddock Lewis. Meu verdadeiro nome perdi há muito tempo, durante uma expedição ao sul da Patagônia. Vaguei por muitos anos sem uma identidade, um homem invisível, sem jamais poder fazer um cadastro em uma pizzaria, sem poder assinar um cheque sem fundo. Passei anos tentando me reencontrar, redescobrir quem eu era. Recorri a filósofos existencialistas: Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Nietzsche, Pedro Bial... sem obter respostas. Empreendi viagens ao coração de cavernas, ao topo de montanhas e ao fundo de rios para consultar gurus, monges, oráculos e peixes-sábios em busca de autodefinição e sentido pessoal. Tudo em vão. Nessas andanças, acabei me instalando em uma clareira nas florestas da Euroáfrica Periodontal. E lá eu renasci.

Foi numa tarde de tempestade. Ainda lembro como se eu mesmo tivesse estado lá. O dia foi encoberto por uma súbita cortina de trevas, nuvens negras de aparência sobrenatural. O vento rugia furiosamente anunciando a iminente carga d'água que desabaria dos céus. Desci correndo as escadas a fim de recolher as roupas do varal. Nesse momento, um corisco rasgou a escuridão e tingiu a noite vespertina com um clarão azul-elétrico. E então o firmamento regurgitou um poderoso trovão que ressoou em cada fibra de meu corpo.

bababraddockdalgharaghtakamminaronnbronntornnerrontuonnthunntrovahhhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!

Quando a escuridão tornou a me engolfar, senti-me estranhamente vazio. A chuva ganhou força. Das entranhas da floresta, o uivo dos ventos roçando as árvores teceu no ar uma lúgubre melodia.

lluuuuuwwwwiiiiiiiiwwwllleeeewwwwwuuuuiiiuuuullllluuuullllluuuuwwwwwllllllleeewwwwiiiisss

Foi como se eu tivesse chutado a quina da cama com o mindinho do pé esquerdo (meu favorito, vale ressaltar) logo ao acordar, colocando todos os sentidos em imediata prontidão. E então, aquelas palavras, proferidas pelo rugido do trovão, escritas com o fogo do relâmpago, reveladas pela mão invisível dos ventos, moldaram para sempre meu ser. Impregnaram cada célula, músculo, osso, cartilagem, tecido e verruga. Braddock... Lewis... Um chamado! Um despertar! Um... um amendoim esquecido no meu bolso! Que sorte, eu o estava procurando havia semanas!





(Raios e trovões! Crédito da foto: Tio Vítor)







Desde então, esse é o nome que assombra os patifes. É o nome que aparece na porta do meu escritório, logo acima da placa onde se lê "se você tem um problema e pode pagar, eu resolvo". É o nome com que assino minhas matérias esporádicas no jornal "A Gazeta Grunhidora". É o nome que ecoa nos cantos sobre feitos épicos de tempos idos. É o nome que as mulheres derramam acidentalmente no ouvido dos maridos no meio da noite ao procurar a proteção de um peitoral masculino. É o nome que corre a boca pequena de facções rebeldes do leste europeu que almejam oficializar o pastoreio como esporte olímpico. É este também o nome que aparece na minha carteirinha da Associação Nacional dos Criadores de Anfioxo. Sabem, aquele bicho sem notocorda? Isso mesmo. Eu crio um aqui no meu aquário. Jeremias. Esse é o nome do meu anfioxo. Bicho leal, nunca pede mais do que precisa... Ops, tergiversei!

Sim! Braddock Lewis. Guarde bem! Soletra-se B-R-A-D-D-O-C-K-L-E-W-I-S.

Claro, depois disso, imaginem o inferno que foi colocar toda minha documentação em dia.

EPÍLOGO

Algum tempo depois desse evento, fui limpar a mochila que havia usado na tal fatídica expedição à Patagônia, e adivinhem só: em um dos compartimentos, lá estava meu nome, escondido debaixo de umas meias usadas, e eu não havia percebido. As coisas estão sempre no último lugar que procuramos mesmo...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Memórias de um tempo que não vivi


Já perdi as contas de quanto tempo estou nesse ramo. Não que vá fazer diferença, não estou contando os dias para a aposentadoria. Mas às vezes, em momentos de nostalgia, me pego refletindo sobre tudo o que passei até aqui. Quando começo a ficar melancólico, geralmente descarrego minha M1911A1 em um travesseiro e me sinto melhor.

Busco paisagens longínquas na memória, mas muitas lembranças permanecem soterradas sob as cenas de desespero e destruição que já presenciei; sons, abafados por gritos de terror; sensações, anestesiadas pelos ecos da dor.

Meus pais não queriam isso para mim, posso garantir. Meu pai era detector de minas terrestres, se orgulhava do que fazia, e, como qualquer pai dedicado, desejava ver o filho trilhar o mesmo caminho. Ele me treinava para que eu pudesse assumir o lugar dele e ele se aposentasse aos 28 anos.

Meu pai sempre se mostrou preocupado com minha formação. Tive uma educação dura, mas hoje sei que estava apenas querendo me preparar para enfrentar o mundo. "Fortaleça o espírito, e fortalecerá o corpo", dizia meu velho, bebericando um chocolate quente da varanda de nossa casa enquanto eu prendia os pneus do carro com correntes em meio à nevasca.

De vez em quando, em meio às águas turvas da memória, emergem imagens de típicos momentos pai e filho, como quando ele me mandava retirar os vespeiros no telhado da casa com uma pinça de churrasco enquanto ele mordiscava petiscos à beira da piscina; ou quando ele me mandava expulsar os ursos pardos do nosso quintal enquanto ele assistia ao último capítulo de sua série favorita.

Ele estava preocupado em me treinar a viver. Com meu pai, aprendi a arte da negociação, a nunca desviar o olhar de uma encarada, a xingar no trânsito e a hora certa de entrar em uma briga de rua. Às vezes ele até mesmo pagava algumas gangues para me atacar, tudo parte da educação que ele queria me prover.

Certo dia, meu pai não voltou para casa. Havia pisado em uma mina terrestre. Talvez essa tenha sido a principal lição que tenha me deixado: a vida é imprevisível como... como... bem, nesse caso como andar em um campo minado de bermuda e chinelo.

Após a morte de meu pai, fui tomado de um ímpeto aventureiro. Queria explorar, viajar, descobrir novos lugares, povos e culturas. Li um anúncio no jornal sobre um grupo de exploradores que daria a volta ao mundo em uma jangada  e estava recrutando um especialista em reparo de motores. Eu sabia que minha mãe, ainda abalada pela perda do marido, jamais me deixaria ir. Determinado que estava a seguir meu sonho, decidi fugir de casa. Então, para poupar minha mãe da angústia de ter um filho desaparecido, fiz o que qualquer filho com um pingo de consideração faria: forjei minha morte em um acidente horrível e grotesco de trator.

Logo, vi-me sulcando o dorso do grande oceano a bordo da pequena embarcação. Nessa viagem, padeci todo tipo de sofrimento que geralmente acometem aqueles que se lançam ao mar: escorbuto, febre tifoide, micose e, o pior dos males, o terrível enjoo marítimo. Ainda tivemos de enfrentar lulas gigantes, tubarões alados, uma horda de escorpiões marinhos, pelicanos venenosos e até mesmo piratas somalis.

Após rebatermos todos esses infortúnios, uma tempestade se fechou sobre nós e sorveu nossa embarcação, sepultando a carcaça de madeira nas profundezas das águas. Escapei no único bote salva-vidas, sob protestos e maldições que meus companheiros atiravam sobre mim antes de irem ter com Netuno. Após muito tempo à deriva, cheguei a uma ilha onde reaprendi a viver.

Pelo suor de minha tanga, consegui domar as forças brutas da natureza. Precisei descobrir como criar as formas mais rudimentares de civilização a partir do nada. Contemplei o fruto de meu trabalho em cada laço de cipó, cada galho cortado, cada pedra amolada, cada rede trançada, cada lança afiada, cada peixe eviscerado, cada instalação elétrica armada.

Também corri muitos perigos. Após ser atacado por lobos selvagens, construí um refúgio sobre as árvores, só para ver minha carteira ser roubada por uma gangue de babuínos. Ainda precisei lidar com tribos antropófagas, uma erupção vulcânica, uma chuva de meteoros, agentes da receita federal me acusando de aumento ilícito de patrimônio, ordens de reintegração de posse, bombeiros querendo interditar minha cabana por falta de alvará, além de testemunhas de Jeová. Sim, foram as três horas mais difíceis da minha vida, ao menos naquela semana, até que fui finalmente resgatado por um zepelim.

Bem, chega de reminiscências por enquanto.

Vou até ali descarregar meu revólver em um travesseiro e já volto.

Leia mais:
Batismo de fogo
Minha autobiografia

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Uma breve apresentação

Oi!

Meu nome é Braddock Lewis, você deve ter notado pela placa na porta do meu escritório. Se você está aqui é porque não está em nenhum outro lugar, o que não significa que seja bem-vindo.

Você provavelmente não me conhece, afinal não frequentamos os mesmos círculos. A não ser que resgatar prisioneiros de guerra em uma fortaleza de bambu construída sobre um banco de areia movediça na fronteira do Suriname com a Guiana Francesa seja seu ideal de programa para uma sexta-feira à noite.

Quer saber quem sou eu? Isso não é da sua conta, palhaço!

Tudo o que você precisa saber é que eu não sou o tipo que você gostaria que aparecesse na sua casa  no meio da madrugada para alimentar seu peixinho dourado.

Aviso logo de cara: sou um sujeito de poucas amizades. Tenho apenas dois amigos, mas que nunca me deixam na mão: meu revólver e meu cruzado de direita. Eles não são de conversa, mas crescemos na mesma vizinhança, então nos entendemos bem.

A noite é meu manto, o asfalto queimado é meu chão, o monóxido de carbono que exala do tubo furado do meu aquecedor a gás é o ar que respiro – isso quando não estou com um dos meus cigarros de erva daninha na boca.

Recentemente aprendi a ouvir o silêncio e a andar sem sair do lugar. Sou um cara sincero. Vou direto ao assunto, sem rodeios. Odeio metáforas. Desprezo a sinédoque. Cuspo na cara da hipérbole. Refuto veementemente a catacrese e acho o pronome pessoal do caso reto uma grande farsa.

Carrego um arsenal de frases de efeito, bebo suco de urtiga no café da manhã para afiar a língua e aguçar os sentidos. À noite, rego a coerência com uma garrafa de absinto.

Desvirtuo a realidade com doses homeopáticas de surrealismo. Entorto papos retos, abalizo sincretismos, concilio discrepâncias e jamais deixei um sudoku incompleto.

Meu esporte é a roleta russa. Fui campeão nacional há alguns anos, mas a liga fechou por falta de membros. Atualmente me dedico a atividades mais leves, como basejumping e leitura de bula de remédios tarja preta. Meu autor preferido: Bayer.

Meu estilo de vida não é saudável, mas não posso me queixar. A última vez que peguei uma gripe foi no inverno de --72. Eu era jovem e incauto, e queria saber se a luz da geladeira realmente se apaga quando a porta se fecha.

Sou um homem de hábitos simples e crenças sólidas. Acredito que o tempo é o melhor remédio, que a propaganda é a alma do negócio, que os últimos jamais serão os primeiros e que aquele bife suculento que servem no Bar do Tobias não é carne de mendigo, como dizem por aí.

Abraço a vida todos os dias e dou um peteleco na orelha da morte todas as noites. Meu lema é “viva hoje como se estivesse com enfisema pulmonar”. Minha religião é um copo de uísque com duas pedras flutuando dentro.

Deus? É um sujeito sagaz e com um senso de humor que admiro para um cara da idade dele e com tanta responsabilidade nas costas. Mas nem pense em emprestar dinheiro pro safado. Se você procurá-lo depois de dois meses para cobrar a grana ele oferecerá o pagamento em piedade divina e salvação do fogo eterno.

Garantir minha paz de espírito vá lá, mas quem vai encher o tanque do meu Chevete baleado?

O Diabo? É apenas um cara com um ponto de vista diferente, e com um péssimo tino para o marketing pessoal. Já tentei ajudá-lo com isso, mas nossos gênios não batem.

Se tenho medo? O medo é apenas um velho conhecido com quem fiz um acordo há muito tempo: ele não mexe comigo e eu não mexo com ele. Nesse ramo você aprende a lidar com o medo. É como aquele estranho que você encontra todo dia no ponto de ônibus e eventualmente acaba trocando uma ideia até a condução chegar e cada um ir para um lado, mas com quem nunca terá um vínculo profundo a ponto de convidá-lo para o aniversário de seis anos da sua filha.

A solidão é minha companheira. Prefiro assim. Até ontem eu tinha um porquinho da índia, mas precisei eliminá-lo quando começou a me olhar de um jeito estranho.

“Você está ficando paranóico”, dirá você. Pois bem, tente controlar os nervos com um tubarão branco pilotando uma locomotiva na sua direção no meio do deserto. É aí, meu amigo, que os homens se separam dos lobos.

Desconfio que meu cérebro esteja tramando para me matar. Ultimamente tenho achado que estou desenvolvendo dupla personalidade. E esse carinha interior definitivamente não gosta de manteiga de amendoim. Outro dia mesmo precisei apunhalar minha mão esquerda quando ela tentou arrancar meu olho com um saca-rolha.

Não vou negar: ando meio tenso. Sinto-me como uma biribinha de festa junina jogada no meio de uma apresentação de dança irlandesa. A qualquer momento posso explodir. E você não vai querer estar por perto quando o corvo da meia-noite der seu mergulho derradeiro.

Como disse, ando meio tenso. Mas sigo firme. Firme como prego na areia... Minha fé de que ainda vou encontrar a raspadinha premiada me faz levantar da cama todos os dias, mesmo quando minha mente me diz que não há nada para mim lá fora.

O que eu faço? Bem, se você disser que o trabalho define a pessoa, eu lhe digo que você é um pobre coitado sem razão para continuar secretando bílis.

Meu ofício não requer diplomas, não se aprende em salas de aula. Minha professora foi a vida, essa vadia sem coração. Me formei nas ruas, me pós-graduei com os bárbaros hiperbóreos e obtive o doutorado desarmando bombas de nitroglicerina em trens desgovernados. Recentemente fiz um curso de gastronomia.

Isso posto, digamos somente que meu ramo se situa num campo  nebuloso entre lógica e intuição, razão e instinto, digressão e pragmatismo. Nesse ramo não se entra pela porta da frente. Um bela dia você é simplesmente tragado por ele, e de repente você se vê no meio de um bar em Amsterdã discutindo metafísica barata com traficantes de guarda-chuvas.

Não é uma vida fácil, mas se eu quisesse sossego jamais teria abandonado a Unidade de Resgate em Penhascos do Corpo de Bombeiros dos Alpes Suíços. Era uma época mais tranquila, realmente. Mas sentia que aquilo não era para mim.

Eu poderia ter seguido outros rumos, talvez estivesse alcançado uma condição melhor. Quem sabe poderia estar levando uma vida mais pacata,  Mas não. Preferi ser a pedra do que a vidraça.

Escrever me acalma. Gosto de deslizar os dedos pelo teclado e transferir minhas ideias para o papel após um dia cansativo. Ajuda a limpar a mente e desobstruir o raciocínio.

E antes que me perguntem, sim, tenho mais o que fazer, patifes.