segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Antologia do ônibus XXVVIIIIIIQVI

Tive que voltar a tomar o ônibus depois que o motor do meu Chevete baleado superaqueceu. Depois disso me arrependi de ter usado o líquido de arrefecimento para fazer uma sopa de couve-flor.

A sopa estava deliciosa, não entendam errado, mas agora vou ter que desembolsar uma bica para reparar o maldito motor, o que significa que terei de adiar de novo minha cirurgia de reimplante do ciso (sim, ele me faz muita falta). Ou talvez, em vez de gastar uma bica no carro, eu literalmente dê uma bica na têmpora do mecânico e fuja enquanto ele estiver desacordado sobre uma poça de óleo. Torço para que ele cometa um deslize que justifique essa medida. Afinal, não sou nada menos do que justo.

Enquanto aguardo o desenrolar dos acontecimentos para aplicar minha sentença àquele rato de motores, o ônibus volta a ser meu principal meio de locomoção por esta cidade nojenta. Logo percebo as mudanças que o transporte público sofreu nos últimos tempos. As barras de apoio foram pintadas de amarelo. Só.

Pensam que não é uma grande coisa? Pois imagine que, por um segundo, você tenha que retirar a mão da barra para coçar a cabeça com o veículo em movimento; ao mesmo tempo, o motorista sofre do tradicional espasmo na perna (síndrome que acomete nove em cada oito motoristas de ônibus) e - acidentalmente, claro - afunda o pé no freio, reduzindo instantaneamente a velocidade de 87 km/h para 8 km/h. Nesse momento, totalmente surpreendido, você só poderá contar com seus reflexos para não ser apanhado pela mão impiedosa da inércia e ser arremessado de cabeça contra o pára-brisa. É aí que a barra recém-pintada de uma cor vibrante fará toda a diferença, pois será mais facilmente captada pelo aparelho ocular, que enviará sinais para o córtex subalterno pré-frontal (possivelmente) desencadear a descarga elétrica que impulsionará o braço na direção da barra e o salvará de virar uma bola de pinball humana dentro de um tubo de lata gigante cheio de quinas mortais.

Sim, aposto que você agora está revendo seus conceitos, e pensando que talvez não esteja sendo tão justo ao reclamar das condições do transporte público; de como exagerou ao sair bradando por aí que as autoridades não fazem nada para melhorar a vida dos passageiros de coletivos.

Arrependa-se!



Reparem como o cinza prejudica a visibilidade e a coordenação motora dos passageiros (crédito: um cobrador sem senso de direção)



O ônibus finalmente chega, empurro quem estiver à frente, abrindo caminho até a roleta. Quando uma senhora passa seu cartão liberando a catraca, rapidamente lanço uma cortina de fumaça que cega a todos momentaneamente e me esgueiro girando a roleta, um pequeno truque que aprendi com um assistente social para pegar condução de graça. Que se matem nas ruas por causa do passe livre. Eu faço minha própria tarifa!

Vou avançando em meio àquele caos humano a cotoveladas, e enfim consigo achar um espaço para esticar minha rede entre duas barras de segurança bem em frente à porta de desembarque, obrigando os passageiros a abaixar para conseguir sair.

No meio da viagem, vejo uma mulher pedindo licença aos outros passageiros e avançando em direção à porta de saída, no fundo do veículo. Com apenas uma das mãos, ela tentava se equilibrar, se jogando de barra em barra entre os solavancos do ônibus. Com a outra mão, ela segurava a filha pequena, que, ao contrário da mãe, parecia estar se divertindo com a situação inusitada. Deduzi que devia ser a primeira viagem de ônibus da garota.

Quando finalmente a mulher conseguiu chegar perto da porta, ela iniciou uma conversa singela com a pequena.

- Está vendo filha? É assim que a mamãe vai para o trabalho todo dia.

- Eu também vou andar de ônibus quando crescer? - perguntou a jovem incauta.

- Claro que vai, filha. Quando for maior, vai andar todo dia de ônibus.

Sou tomado de uma inesperada sensação de piedade. Em um raro momento de compaixão, algo que acontece a cada dez anos bissextos (se não for ano de Olimpíada), penso comigo mesmo se não seria melhor pegar aquela jovem infanta e arremessá-la para fora do veículo em movimento, e assim poupá-la do sofrimento futuro.

Já que a mãe não se importava com o destino da própria filha, num terrível ato de abandono maternal, caberia a mim salvá-la.

Contudo, no momento que me virei para abrir a janela, o ônibus parou e as duas desceram.

Até hoje o rosto daquela pobre criança me assombra. Viverei para sempre atormentado pela chance desperdiçada de salvar uma vida inocente.

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