terça-feira, 23 de abril de 2013

Onde os fracos não têm vez - Parte 1: a primeira parte

A chuva encharca meus sapatos e seca minhas ideias. A aba de meu chapéu  impede que as gotas apaguem meu cigarro de palha. Caminho pelas ruas tentando desviar das poças d'água no chão. A noite acaba de mergulhar em sua hora mais sinistra, entre 23h38 e 00h17. Um sentimento me incomoda e faz gelar a espinha: minhas meias estão úmidas. Preciso lembrar de trocar a fita crepe na sola do meu sapato.

Tinha mais um caso em mãos. Mais um, como tantos outros. Mas desta vez era diferente. Desta vez os eventos eram mais obscuros. As conexões aparentes se revelavam falsas, num sinistro jogo de ilusão e sombras que ameaçava abalar minha própria fé na razão.

Eu havia chegado a um beco sem saída. Não estou falando metaforicamente: virei à esquerda e dei de cara com um muro. Uns tipos estranhos jogavam dominó nas sombras. Almas perdidas na noite. Eu podia ter acabado como um deles, mas fui mais esperto e abandonei a faculdade de jornalismo logo no primeiro ano.

Dou meia volta e aperto o passo em direção ao Bar do Tobias. Preciso de um drinque para lubrificar as ideias. Logo avisto o sinal de neon do estabelecimento como um farol na escuridão, tingindo a fina bruma da noite de um roxo-beterraba-dos-ventos. Assim que entro pela porta giratória, Isaías, o chapeiro, começa a salgar um belo pedaço de coxão-petrificado que tanto aprecio. "Hoje não, Dois Canos (não me perguntem o motivo do apelido dele. Sério, não insistam, vocês não vão querer saber). Preciso só de um engasga-gato", me apresso a dizer, tomando um lugar no balcão.

Isaías, o Dois Canos, me traz uma cachaça artesanal, destilada nos porões do próprio bar. A primeira dose desce como um chute de coturno na boca do estômago. A segunda é suave como afago de amante.

A bebida enxágua o raciocínio, lavando cenas da memória, até que volto ao início de tudo. Me vejo de volta àquela noite, deitado em meu sofá surrado, pensando em como pagaria o aluguel do mês, quando ela entrou pela minha porta como uma borboleta que adentra uma caverna habitada por um rinoceronte raivoso. Aquela mulher, emanando a vibrante beleza da meia-idade, de quem ainda tenta se agarrar desesperadamente ao viço da juventude, mas já com o aroma pungente e a textura macia de uma fruta amadurecida. Ainda lembro das primeiras palavras que ela disse ao entrar em meu escritório: "meu Deus, que cheiro é esse?". E então colocou em minhas mãos aquele bilhete com uma mensagem póstuma de um homem morto. Aquele pedaço de papel era a chave de tudo, mas onde estaria a porta que ela destrancaria?

Algo terrível estava prestes a acontecer, mas ali eu era apenas um peão no tabuleiro de um jogo de xadrez entre um texugo e uma doninha.

Esse caso está ameaçando sair do controle. Nunca haviam tentado me matar tantas vezes na mesma semana desde que fui presidente do clube de bocha no ano em que o time foi rebaixado à terceira divisão estadual.

Os fios dos fatos teciam um nó em minha mente. Essa situação me deixa nervoso. Nesse ramo, é preciso ter cuidado. É como diz o ditado: se você não sabe quem é o alvo, é porque o alvo é você.

Mais um gole. O estresse começa a se dissipar, mas me pergunto até quando minha úlcera aguentará afogar minhas preocupações com destilados. Penso se não é hora de voltar a me consultar com minha psicóloga. Nunca mais a vi desde aquele dia em que ela teve aquela crise de choro no meio de uma sessão. Eu avisei que ela não iria gostar de ouvir sobre minha viagem à Tanzânia.

De repente, um barulho chama minha atenção como apenas o som do aço rompendo fibras de carne humana é capaz de fazer.

Virei rapidamente, e então vi...

PLIM!

Ops, o micro-ondas! Minha torta de azulejo está pronta.

Leia mais:
Minha auto-biografia pessoal não autorizada
Quem sou eu? Isso não é da sua conta, palhaço!

4 comentários:

Maddock Willis disse...

O senhor tome cuidado com o que vai dizer, maldito. Espero que seja fiel aos fatos, caso contrário eu...

Espere um pouco, torta de azulejo? Guarde meu pedaço, já estou chegando.

Hino do Brasil disse...

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heróico o brado respungante!

E o sol do Líberdade, raios fúlgidos, brilhou no céu da Pátria nesse instante.

Se o senhor....

Aaaaaah errei!

Hinno da Bandeira disse...

Não sei a letra!

Alberto Caeiro disse...

Onde estão minhas pílulas para esquizofrenia?