terça-feira, 23 de abril de 2013

Onde os fracos não têm vez - Parte 1: a primeira parte

A chuva encharca meus sapatos e seca minhas ideias. A aba de meu chapéu  impede que as gotas apaguem meu cigarro de palha. Caminho pelas ruas tentando desviar das poças d'água no chão. A noite acaba de mergulhar em sua hora mais sinistra, entre 23h38 e 00h17. Um sentimento me incomoda e faz gelar a espinha: minhas meias estão úmidas. Preciso lembrar de trocar a fita crepe na sola do meu sapato.

Tinha mais um caso em mãos. Mais um, como tantos outros. Mas desta vez era diferente. Desta vez os eventos eram mais obscuros. As conexões aparentes se revelavam falsas, num sinistro jogo de ilusão e sombras que ameaçava abalar minha própria fé na razão.

Eu havia chegado a um beco sem saída. Não estou falando metaforicamente: virei à esquerda e dei de cara com um muro. Uns tipos estranhos jogavam dominó nas sombras. Almas perdidas na noite. Eu podia ter acabado como um deles, mas fui mais esperto e abandonei a faculdade de jornalismo logo no primeiro ano.

Dou meia volta e aperto o passo em direção ao Bar do Tobias. Preciso de um drinque para lubrificar as ideias. Logo avisto o sinal de neon do estabelecimento como um farol na escuridão, tingindo a fina bruma da noite de um roxo-beterraba-dos-ventos. Assim que entro pela porta giratória, Isaías, o chapeiro, começa a salgar um belo pedaço de coxão-petrificado que tanto aprecio. "Hoje não, Dois Canos (não me perguntem o motivo do apelido dele. Sério, não insistam, vocês não vão querer saber). Preciso só de um engasga-gato", me apresso a dizer, tomando um lugar no balcão.

Isaías, o Dois Canos, me traz uma cachaça artesanal, destilada nos porões do próprio bar. A primeira dose desce como um chute de coturno na boca do estômago. A segunda é suave como afago de amante.

A bebida enxágua o raciocínio, lavando cenas da memória, até que volto ao início de tudo. Me vejo de volta àquela noite, deitado em meu sofá surrado, pensando em como pagaria o aluguel do mês, quando ela entrou pela minha porta como uma borboleta que adentra uma caverna habitada por um rinoceronte raivoso. Aquela mulher, emanando a vibrante beleza da meia-idade, de quem ainda tenta se agarrar desesperadamente ao viço da juventude, mas já com o aroma pungente e a textura macia de uma fruta amadurecida. Ainda lembro das primeiras palavras que ela disse ao entrar em meu escritório: "meu Deus, que cheiro é esse?". E então colocou em minhas mãos aquele bilhete com uma mensagem póstuma de um homem morto. Aquele pedaço de papel era a chave de tudo, mas onde estaria a porta que ela destrancaria?

Algo terrível estava prestes a acontecer, mas ali eu era apenas um peão no tabuleiro de um jogo de xadrez entre um texugo e uma doninha.

Esse caso está ameaçando sair do controle. Nunca haviam tentado me matar tantas vezes na mesma semana desde que fui presidente do clube de bocha no ano em que o time foi rebaixado à terceira divisão estadual.

Os fios dos fatos teciam um nó em minha mente. Essa situação me deixa nervoso. Nesse ramo, é preciso ter cuidado. É como diz o ditado: se você não sabe quem é o alvo, é porque o alvo é você.

Mais um gole. O estresse começa a se dissipar, mas me pergunto até quando minha úlcera aguentará afogar minhas preocupações com destilados. Penso se não é hora de voltar a me consultar com minha psicóloga. Nunca mais a vi desde aquele dia em que ela teve aquela crise de choro no meio de uma sessão. Eu avisei que ela não iria gostar de ouvir sobre minha viagem à Tanzânia.

De repente, um barulho chama minha atenção como apenas o som do aço rompendo fibras de carne humana é capaz de fazer.

Virei rapidamente, e então vi...

PLIM!

Ops, o micro-ondas! Minha torta de azulejo está pronta.

Leia mais:
Minha auto-biografia pessoal não autorizada
Quem sou eu? Isso não é da sua conta, palhaço!

terça-feira, 16 de abril de 2013

Se quer algo bem feito, faça você mesmo

Outro dia, no ônibus, pensei em alguns títulos para minha autobiografia pessoal não-autorizada. Em breve nas melhores padarias do bairro.

Braddock Lewis - Vida e obra

Braddock Lewis - Vida, obra e morte

Braddock Lewis - Vida, obra, morte e ressurreição

Braddock Lewis - Vida, obra, morte, ressurreição, vida, ferida mortal, melhora, doença rara, morte, morte, ressurreição, morte, vida, viagem de férias, morte de novo, semi-ressurreição, Morte e Vida Severina

Braddock Lewis - Toda a vida e obra em verso

Braddock Lewis - Vida em verso, obra em prosa

Braddock Lewis - Fatos e histórias nunca antes narrados em livro

Braddock Lewis - Tudo aquilo que você ouviu por aí, agora em livro

Braddock Lewis - Psicografado Pelo Espírito de André Luís

Braddock Lewis - Psicografado Pelo Espírito do Próprio Braddock Lewis Após o Espírito de André Luis Levar uma Voadora na Garganta para Aprender a Não se Meter Onde Não é Chamado

Braddock Lewis - O Último Rei-filósofo

Braddock Lewis - Tudo sobre a vida do homem que mudou o planeta

Braddock Lewis - Tudo sobre a vida do homem que mudou o planeta depois da bomba de hidrogênio

Braddock Lewis - Tudo sobre a bomba de hidrogênio: procedimentos de montagem, operação e desarme

Braddock Lewis - A Sociedade da bomba de hidrogênio

Braddock Lewis - O homem que viveu até o fim da vida

Braddock Lewis - Dia 28/07/1994, das 11h02min às 11h03min

Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca de pão...

...Braddock Lewis - A história de um homem que nunca matou ninguém com uma faca de pão da Tramontina

Braddock Lewis - A história de um homem que odiava esquilos

Braddock Lewis - A história de um homem que nunca mudou de ideia

Braddock Lewis - A história de um homem que às vezes mudava de ideia

Braddock Lewis - A história de um homem e seu amigo esquilo

Braddock Lewis - Aforismos em Dó bemol

Braddock Lewis - Aforismos em Si Meio Diminuto Com Sétima Aumentada

Braddock Lewis - O Dia em que Quebrei a Perna Jogando Pólo Aquático

Braddock Lewis - Ontologia Indecifrável

Braddock Lewis - Apocalipse Now

Braddock Lewis - (por motivos legais, esse livro não pode se chamar) Apocalipse Now!

Braddock Lewis - O Livro

Braddock Lewis - O Filme

Braddock Lewis - O Programa de Rádio

Braddock Lewis - O Teatro de Fantoches

Braddock Lewis - Especial de Natal

Braddock Lewis - Especial de Páscoa

Braddock Lewis - Especial de Proclamação da República

Braddock Lewis - Especial de Dia do Caixeiro Viajante

Braddock Lewis - Quem Mexeu no Meu Queijo?

Braddock Lewis - Quem Mexeu no Meu Queijo? Foi Você, Não Foi? Confesse, Verme! Não, Piedade, Eu Estava Com Fome! Pare de Chorar e Coloque a Mão Sobre a Mesa! Não, Por Favor, eu Preciso da Minha Mão Para Sobreviver, Sou Pianista da Filarmônica de Berlim! Devia Ter Pensado Nisso Antes de Sair Pegando o Queijo dos Outros! Não, Não, a Faca de Pão Não, NÃÃÃÃ...

Braddock Lewis - 50 Tons de Lewis

Braddock Lewis - O Homem, a Lenda, o Mito

Braddock Lewis - O Assistente Social, o Pai de Família, o Jagunço Mercenário

Braddock Lewis - O Eletricista, o Mestre de Obras, o Revendedor de Automóveis Semi-usados

Braddock Lewis - A volta ao mundo em 80 dias úteis

Braddock Lewis - A volta ao quarteirão em 80 passadas largas

Braddock Lewis - O começo de uma era

Braddock Lewis - O fim de uma era

Braddock Lewis - O começo do fim de uma era

Era O Braddock de Fim - Começo do Lewis uma (Uma Autobiografia Neo-concretista)

Braddock Lewis - A Inauguração do Pré-Moderno Pós-Socrático

Braddock Lewis - O Surgimento do Intra-Aristotélico Extra-Contemporâneo

Braddock Lewis - A Criação do Sub-Futurista  Pluri-Kantiano

Braddock Lewis - Uma História Tão Incrível que um Título não é Necessário

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência à Pós-Modernidade

Braddock Lewis - Da Alvorada à Decadência à Pós-Modernidade de volta à Alvorada passando pela Decadência meia-hora depois da Pós-Modernidade ser atingida no ombro pela faca de hidrogênio

Braddock Lewis - A Biograf... Vão Procurar o Que Fazer Em Vez de Ficar Bisbilhotando a Vida Alheia, Bando de Desocupados

Braddock Lewis - A autobiografia pessoal não-autorizada

Aí estão. E quero deixar bem claro que, quando fizerem um filme sobre mim, não deixarei que meu papel seja interpretado pelo Adam Sandler. Jamais! Vou até mesmo escrever uma carta para ele agora mesmo, para que ele não venha me encher o saco depois.

Leia mais:
Chegou agora? Puxe uma cadeira, sente-se no chão e permita-me me apresentar a mim mesmo
A máquina de escrever

terça-feira, 9 de abril de 2013

A máquina de escrever

Resolvi limpar um armário antigo que uso para guardar tranqueiras. Em meio àquela bagunça, encontro minha velha máquina de escrever debaixo de uma pilha de papéis envelhecidos. Puxo pela alça e seu peso afunda no ar. Suas engrenagens rangem, atrofiadas pelo confinamento.

Testo o teclado. Ainda há um resquício de tinta. Coloco papel no rolo. A página em branco espera para ser violada. Arrisco um texto.

TEC. O som da criação literária não é orgânico e melífluo, mas uma sucessão tartamuda e mecânica de TEC-TE-TEC-TEC-TE-TECs.

Pele e cobre trocam estímulos. Os tipos emperram. Se exigir demais deles, encavalam. Resistem. Se recusam a acompanhar a velocidade do pensamento. Até que cedem. Os dedos afundam vários centímetros, dissipam a névoa da criatividade. As letras grudam no papel. Que diferença para um teclado de computador, que faz “POC”, e não “TEC”.

É preciso domar a máquina, fazê-la me obedecer. Ela esconde segredos. Procuro o “caps lock” para acionar caixa alta. Não é tão simples, descubro. É preciso conhecer uma coreografia de dedos para se escrever com letra maiúscula.

Assim os monges datiloscopistas faziam: falange do indicador sobre o carpo do anelar com a mão esquerda na terceira casa da quarta fileira de trás pra frente em dó bemol menor a sete graus noroeste às 13h do solstício de inverno. Ou isso, ou pode-se acionar a alavanca de maiúsculas e o fixador – mas, aí, qual a graça? Os dedos doem a cada investida contra o teclado, os músculos da mão começam a enrijecer, mas continuo. Escrever é penoso.

Penso que seria mais fácil bater nas teclas utilizando martelo e cinzel, mas não acho a caixa de ferramentas. Tem que ser no braço mesmo.





(Aí está a máquina que uso para escrever este blog. Crédito da foto: Louis Daguerre)



A luta é injusta. Máquina contra o escritor, munido apenas do material frágil das ideias. É aço contra éter.

Os arames da linguagem se retorcem. A imaginação emana do ferro, emergindo na alva superfície do papel, que será cuspido para fora das vísceras metálicas tão logo termine de ser contaminado pelas palavras.

As letras começam a secar. A tinta da máquina vai chegando ao fim. A linguagem murcha. A imaginação estanca. Retiro o papel do rolo e leio o que criei até então. A história conta de um rei cujos filhos foram mortos em batalha e que agora vê seu reino, sem sucessores, próximo à extinção.

Mas onde está o desfecho? Como termina o conto? Será que o sobrinho-neto-meio-irmão do tio-avô do rei que regressou depois de dado por morto assumiria o trono? Ou o vizinho-primo-enteado do amigo de infância do grão-vizir daria o golpe de Estado? Quem contará o final da história ao autor?

O fio de Ariadne se rompe, e o escritor se vê sozinho com sua pena, perdido em meio ao labirinto. E eis que... MALDIÇÃO!!! ACABOU A ENERGIA ELÉTRIC....................................

Leia mais:
Braddock Rises
Relatos do passado

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Batismo de fogo

Tenho um nome a honrar e uma reputação a zelar, mesmo que para isso eu precise lançar mão de medidas pouco louváveis (do ponto de vista de um escoteiro-mirim-cristão-defensor-dos-direitos-humanos-vegano-virgem). Você sabe, se deixar que manchem seu nome uma vez, precisará mais do que uma boa esfregada para limpá-lo. E Braddock Lewis não é um nome que possa ser desrespeitado sem despertar vingança sanguinolenta.

Não nasci Braddock Lewis. Tornei-me Braddock Lewis. Meu verdadeiro nome perdi há muito tempo, durante uma expedição ao sul da Patagônia. Vaguei por muitos anos sem uma identidade, um homem invisível, sem jamais poder fazer um cadastro em uma pizzaria, sem poder assinar um cheque sem fundo. Passei anos tentando me reencontrar, redescobrir quem eu era. Recorri a filósofos existencialistas: Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Nietzsche, Pedro Bial... sem obter respostas. Empreendi viagens ao coração de cavernas, ao topo de montanhas e ao fundo de rios para consultar gurus, monges, oráculos e peixes-sábios em busca de autodefinição e sentido pessoal. Tudo em vão. Nessas andanças, acabei me instalando em uma clareira nas florestas da Euroáfrica Periodontal. E lá eu renasci.

Foi numa tarde de tempestade. Ainda lembro como se eu mesmo tivesse estado lá. O dia foi encoberto por uma súbita cortina de trevas, nuvens negras de aparência sobrenatural. O vento rugia furiosamente anunciando a iminente carga d'água que desabaria dos céus. Desci correndo as escadas a fim de recolher as roupas do varal. Nesse momento, um corisco rasgou a escuridão e tingiu a noite vespertina com um clarão azul-elétrico. E então o firmamento regurgitou um poderoso trovão que ressoou em cada fibra de meu corpo.

bababraddockdalgharaghtakamminaronnbronntornnerrontuonnthunntrovahhhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!

Quando a escuridão tornou a me engolfar, senti-me estranhamente vazio. A chuva ganhou força. Das entranhas da floresta, o uivo dos ventos roçando as árvores teceu no ar uma lúgubre melodia.

lluuuuuwwwwiiiiiiiiwwwllleeeewwwwwuuuuiiiuuuullllluuuullllluuuuwwwwwllllllleeewwwwiiiisss

Foi como se eu tivesse chutado a quina da cama com o mindinho do pé esquerdo (meu favorito, vale ressaltar) logo ao acordar, colocando todos os sentidos em imediata prontidão. E então, aquelas palavras, proferidas pelo rugido do trovão, escritas com o fogo do relâmpago, reveladas pela mão invisível dos ventos, moldaram para sempre meu ser. Impregnaram cada célula, músculo, osso, cartilagem, tecido e verruga. Braddock... Lewis... Um chamado! Um despertar! Um... um amendoim esquecido no meu bolso! Que sorte, eu o estava procurando havia semanas!





(Raios e trovões! Crédito da foto: Tio Vítor)







Desde então, esse é o nome que assombra os patifes. É o nome que aparece na porta do meu escritório, logo acima da placa onde se lê "se você tem um problema e pode pagar, eu resolvo". É o nome com que assino minhas matérias esporádicas no jornal "A Gazeta Grunhidora". É o nome que ecoa nos cantos sobre feitos épicos de tempos idos. É o nome que as mulheres derramam acidentalmente no ouvido dos maridos no meio da noite ao procurar a proteção de um peitoral masculino. É o nome que corre a boca pequena de facções rebeldes do leste europeu que almejam oficializar o pastoreio como esporte olímpico. É este também o nome que aparece na minha carteirinha da Associação Nacional dos Criadores de Anfioxo. Sabem, aquele bicho sem notocorda? Isso mesmo. Eu crio um aqui no meu aquário. Jeremias. Esse é o nome do meu anfioxo. Bicho leal, nunca pede mais do que precisa... Ops, tergiversei!

Sim! Braddock Lewis. Guarde bem! Soletra-se B-R-A-D-D-O-C-K-L-E-W-I-S.

Claro, depois disso, imaginem o inferno que foi colocar toda minha documentação em dia.

EPÍLOGO

Algum tempo depois desse evento, fui limpar a mochila que havia usado na tal fatídica expedição à Patagônia, e adivinhem só: em um dos compartimentos, lá estava meu nome, escondido debaixo de umas meias usadas, e eu não havia percebido. As coisas estão sempre no último lugar que procuramos mesmo...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Memórias de um tempo que não vivi


Já perdi as contas de quanto tempo estou nesse ramo. Não que vá fazer diferença, não estou contando os dias para a aposentadoria. Mas às vezes, em momentos de nostalgia, me pego refletindo sobre tudo o que passei até aqui. Quando começo a ficar melancólico, geralmente descarrego minha M1911A1 em um travesseiro e me sinto melhor.

Busco paisagens longínquas na memória, mas muitas lembranças permanecem soterradas sob as cenas de desespero e destruição que já presenciei; sons, abafados por gritos de terror; sensações, anestesiadas pelos ecos da dor.

Meus pais não queriam isso para mim, posso garantir. Meu pai era detector de minas terrestres, se orgulhava do que fazia, e, como qualquer pai dedicado, desejava ver o filho trilhar o mesmo caminho. Ele me treinava para que eu pudesse assumir o lugar dele e ele se aposentasse aos 28 anos.

Meu pai sempre se mostrou preocupado com minha formação. Tive uma educação dura, mas hoje sei que estava apenas querendo me preparar para enfrentar o mundo. "Fortaleça o espírito, e fortalecerá o corpo", dizia meu velho, bebericando um chocolate quente da varanda de nossa casa enquanto eu prendia os pneus do carro com correntes em meio à nevasca.

De vez em quando, em meio às águas turvas da memória, emergem imagens de típicos momentos pai e filho, como quando ele me mandava retirar os vespeiros no telhado da casa com uma pinça de churrasco enquanto ele mordiscava petiscos à beira da piscina; ou quando ele me mandava expulsar os ursos pardos do nosso quintal enquanto ele assistia ao último capítulo de sua série favorita.

Ele estava preocupado em me treinar a viver. Com meu pai, aprendi a arte da negociação, a nunca desviar o olhar de uma encarada, a xingar no trânsito e a hora certa de entrar em uma briga de rua. Às vezes ele até mesmo pagava algumas gangues para me atacar, tudo parte da educação que ele queria me prover.

Certo dia, meu pai não voltou para casa. Havia pisado em uma mina terrestre. Talvez essa tenha sido a principal lição que tenha me deixado: a vida é imprevisível como... como... bem, nesse caso como andar em um campo minado de bermuda e chinelo.

Após a morte de meu pai, fui tomado de um ímpeto aventureiro. Queria explorar, viajar, descobrir novos lugares, povos e culturas. Li um anúncio no jornal sobre um grupo de exploradores que daria a volta ao mundo em uma jangada  e estava recrutando um especialista em reparo de motores. Eu sabia que minha mãe, ainda abalada pela perda do marido, jamais me deixaria ir. Determinado que estava a seguir meu sonho, decidi fugir de casa. Então, para poupar minha mãe da angústia de ter um filho desaparecido, fiz o que qualquer filho com um pingo de consideração faria: forjei minha morte em um acidente horrível e grotesco de trator.

Logo, vi-me sulcando o dorso do grande oceano a bordo da pequena embarcação. Nessa viagem, padeci todo tipo de sofrimento que geralmente acometem aqueles que se lançam ao mar: escorbuto, febre tifoide, micose e, o pior dos males, o terrível enjoo marítimo. Ainda tivemos de enfrentar lulas gigantes, tubarões alados, uma horda de escorpiões marinhos, pelicanos venenosos e até mesmo piratas somalis.

Após rebatermos todos esses infortúnios, uma tempestade se fechou sobre nós e sorveu nossa embarcação, sepultando a carcaça de madeira nas profundezas das águas. Escapei no único bote salva-vidas, sob protestos e maldições que meus companheiros atiravam sobre mim antes de irem ter com Netuno. Após muito tempo à deriva, cheguei a uma ilha onde reaprendi a viver.

Pelo suor de minha tanga, consegui domar as forças brutas da natureza. Precisei descobrir como criar as formas mais rudimentares de civilização a partir do nada. Contemplei o fruto de meu trabalho em cada laço de cipó, cada galho cortado, cada pedra amolada, cada rede trançada, cada lança afiada, cada peixe eviscerado, cada instalação elétrica armada.

Também corri muitos perigos. Após ser atacado por lobos selvagens, construí um refúgio sobre as árvores, só para ver minha carteira ser roubada por uma gangue de babuínos. Ainda precisei lidar com tribos antropófagas, uma erupção vulcânica, uma chuva de meteoros, agentes da receita federal me acusando de aumento ilícito de patrimônio, ordens de reintegração de posse, bombeiros querendo interditar minha cabana por falta de alvará, além de testemunhas de Jeová. Sim, foram as três horas mais difíceis da minha vida, ao menos naquela semana, até que fui finalmente resgatado por um zepelim.

Bem, chega de reminiscências por enquanto.

Vou até ali descarregar meu revólver em um travesseiro e já volto.

Leia mais:
Batismo de fogo
Minha autobiografia

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Uma breve apresentação

Oi!

Meu nome é Braddock Lewis, você deve ter notado pela placa na porta do meu escritório. Se você está aqui é porque não está em nenhum outro lugar, o que não significa que seja bem-vindo.

Você provavelmente não me conhece, afinal não frequentamos os mesmos círculos. A não ser que resgatar prisioneiros de guerra em uma fortaleza de bambu construída sobre um banco de areia movediça na fronteira do Suriname com a Guiana Francesa seja seu ideal de programa para uma sexta-feira à noite.

Quer saber quem sou eu? Isso não é da sua conta, palhaço!

Tudo o que você precisa saber é que eu não sou o tipo que você gostaria que aparecesse na sua casa  no meio da madrugada para alimentar seu peixinho dourado.

Aviso logo de cara: sou um sujeito de poucas amizades. Tenho apenas dois amigos, mas que nunca me deixam na mão: meu revólver e meu cruzado de direita. Eles não são de conversa, mas crescemos na mesma vizinhança, então nos entendemos bem.

A noite é meu manto, o asfalto queimado é meu chão, o monóxido de carbono que exala do tubo furado do meu aquecedor a gás é o ar que respiro – isso quando não estou com um dos meus cigarros de erva daninha na boca.

Recentemente aprendi a ouvir o silêncio e a andar sem sair do lugar. Sou um cara sincero. Vou direto ao assunto, sem rodeios. Odeio metáforas. Desprezo a sinédoque. Cuspo na cara da hipérbole. Refuto veementemente a catacrese e acho o pronome pessoal do caso reto uma grande farsa.

Carrego um arsenal de frases de efeito, bebo suco de urtiga no café da manhã para afiar a língua e aguçar os sentidos. À noite, rego a coerência com uma garrafa de absinto.

Desvirtuo a realidade com doses homeopáticas de surrealismo. Entorto papos retos, abalizo sincretismos, concilio discrepâncias e jamais deixei um sudoku incompleto.

Meu esporte é a roleta russa. Fui campeão nacional há alguns anos, mas a liga fechou por falta de membros. Atualmente me dedico a atividades mais leves, como basejumping e leitura de bula de remédios tarja preta. Meu autor preferido: Bayer.

Meu estilo de vida não é saudável, mas não posso me queixar. A última vez que peguei uma gripe foi no inverno de --72. Eu era jovem e incauto, e queria saber se a luz da geladeira realmente se apaga quando a porta se fecha.

Sou um homem de hábitos simples e crenças sólidas. Acredito que o tempo é o melhor remédio, que a propaganda é a alma do negócio, que os últimos jamais serão os primeiros e que aquele bife suculento que servem no Bar do Tobias não é carne de mendigo, como dizem por aí.

Abraço a vida todos os dias e dou um peteleco na orelha da morte todas as noites. Meu lema é “viva hoje como se estivesse com enfisema pulmonar”. Minha religião é um copo de uísque com duas pedras flutuando dentro.

Deus? É um sujeito sagaz e com um senso de humor que admiro para um cara da idade dele e com tanta responsabilidade nas costas. Mas nem pense em emprestar dinheiro pro safado. Se você procurá-lo depois de dois meses para cobrar a grana ele oferecerá o pagamento em piedade divina e salvação do fogo eterno.

Garantir minha paz de espírito vá lá, mas quem vai encher o tanque do meu Chevete baleado?

O Diabo? É apenas um cara com um ponto de vista diferente, e com um péssimo tino para o marketing pessoal. Já tentei ajudá-lo com isso, mas nossos gênios não batem.

Se tenho medo? O medo é apenas um velho conhecido com quem fiz um acordo há muito tempo: ele não mexe comigo e eu não mexo com ele. Nesse ramo você aprende a lidar com o medo. É como aquele estranho que você encontra todo dia no ponto de ônibus e eventualmente acaba trocando uma ideia até a condução chegar e cada um ir para um lado, mas com quem nunca terá um vínculo profundo a ponto de convidá-lo para o aniversário de seis anos da sua filha.

A solidão é minha companheira. Prefiro assim. Até ontem eu tinha um porquinho da índia, mas precisei eliminá-lo quando começou a me olhar de um jeito estranho.

“Você está ficando paranóico”, dirá você. Pois bem, tente controlar os nervos com um tubarão branco pilotando uma locomotiva na sua direção no meio do deserto. É aí, meu amigo, que os homens se separam dos lobos.

Desconfio que meu cérebro esteja tramando para me matar. Ultimamente tenho achado que estou desenvolvendo dupla personalidade. E esse carinha interior definitivamente não gosta de manteiga de amendoim. Outro dia mesmo precisei apunhalar minha mão esquerda quando ela tentou arrancar meu olho com um saca-rolha.

Não vou negar: ando meio tenso. Sinto-me como uma biribinha de festa junina jogada no meio de uma apresentação de dança irlandesa. A qualquer momento posso explodir. E você não vai querer estar por perto quando o corvo da meia-noite der seu mergulho derradeiro.

Como disse, ando meio tenso. Mas sigo firme. Firme como prego na areia... Minha fé de que ainda vou encontrar a raspadinha premiada me faz levantar da cama todos os dias, mesmo quando minha mente me diz que não há nada para mim lá fora.

O que eu faço? Bem, se você disser que o trabalho define a pessoa, eu lhe digo que você é um pobre coitado sem razão para continuar secretando bílis.

Meu ofício não requer diplomas, não se aprende em salas de aula. Minha professora foi a vida, essa vadia sem coração. Me formei nas ruas, me pós-graduei com os bárbaros hiperbóreos e obtive o doutorado desarmando bombas de nitroglicerina em trens desgovernados. Recentemente fiz um curso de gastronomia.

Isso posto, digamos somente que meu ramo se situa num campo  nebuloso entre lógica e intuição, razão e instinto, digressão e pragmatismo. Nesse ramo não se entra pela porta da frente. Um bela dia você é simplesmente tragado por ele, e de repente você se vê no meio de um bar em Amsterdã discutindo metafísica barata com traficantes de guarda-chuvas.

Não é uma vida fácil, mas se eu quisesse sossego jamais teria abandonado a Unidade de Resgate em Penhascos do Corpo de Bombeiros dos Alpes Suíços. Era uma época mais tranquila, realmente. Mas sentia que aquilo não era para mim.

Eu poderia ter seguido outros rumos, talvez estivesse alcançado uma condição melhor. Quem sabe poderia estar levando uma vida mais pacata,  Mas não. Preferi ser a pedra do que a vidraça.

Escrever me acalma. Gosto de deslizar os dedos pelo teclado e transferir minhas ideias para o papel após um dia cansativo. Ajuda a limpar a mente e desobstruir o raciocínio.

E antes que me perguntem, sim, tenho mais o que fazer, patifes.