segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Sessão descarrego no farol


Dentro de meu Chevete baleado a fumaça de meu cigarro captura minhas dúvidas como insetos na teia de uma aranha. Quem sequestrou a sobrinha da senhora Freitag? Como vou pagar minhas dívidas sem vender um rim pela quarta vez? Quantos eram os Três Reis Magos? O que quer dizer essa luz vermelha que acabou de acender no painel do carro?

Eu precisava sair do escritório. Gastar a borracha dos pneus ajuda a fazer o pensamento fluir. Mas minha mente parece ter mais buracos que o asfalto, e o raciocínio vaza através dela como conhaque barato derramado no escorredor de macarrão.

As últimas semanas não têm sido fáceis. Alguém com menos estômago já teria alojado uma bala de aço nos miolos, mas não sou o tipo que faz pião de roda-gigante. Seja lá o que isso quer dizer.

Alguns metros adiante o sinal fica vermelho. Não desacelero de imediato. Penso em descontrair um pouco com uma brincadeira que costumava fazer em minha juventude: fechar os olhos, acelerar fundo e atravessar o cruzamento no sinal fechado. Bem, talvez a idade tenha me deixado mais prudente. Resisto à tentação e piso no freio. Pensando bem, melhor não arriscar mesmo, acabo de passar a perna no Universo e ele deve estar à espreita querendo me dar o troco. Melhor não facilitar as coisas para esse moleque vingativo.

Distraído, não noto quando uma criatura se aproxima de meu carro. Ela se esgueira pelo ponto cego de meu retrovisor e aparece subitamente de meu lado. É um rapaz maltrapilho, com dizeres pintados a tinta verde na cara e nos braços. Algum código usado entre gangues ou tribos urbanas, presumo. Ele bate no vidro e faz um sinal com o polegar, um sorriso de excitação juvenil no rosto. Só então me dou conta. Estamos naquela época do ano em que jovens púberes invadem as ruas para mendigar alguns trocados e encher a cara de cerveja de qualidade inferior sob o pretexto de celebrar a entrada em alguma instituição superior de ensino. Para a maioria deles é um bom treino para o futuro, penso.

Do canteiro central, eles saltam em meio aos carros assim que o sinal se fecha como gafanhotos invadindo uma plantação de alface, abordando os motoristas incautos como se o mundo lhes devesse admiração. Para mim é o mesmo que um alpinista querer receber honrarias por ter dirigido um trator até o pé do Everest. Vejo a alegria estampada em seus rostos espinhentos. Inocentes. Aprendi tudo o que precisava na faculdade da vida, me pós-graduei combatendo o submundo do tráfico de Atum da Normandia, fiz mestrado na Guerra Civil do Tadjiquistão, e me doutorei na FAAP.

Contemplo meu abordador, os músculos da face ainda sustentando um sorriso cretino. Abaixo o vidro lentamente. Ele solta:

“E aê, tio, vê aí um trocado pra ajudar os bixos”.

Grande erro! O moleque é incinerado por meu olhar severo. Na hora percebe que escolheu o carro errado para vir mendigar. Ele tenta esboçar alguma reação diante de meu silêncio reprovador, mas ele se vê totalmente paralisado, como a caça que sabe que não adianta correr do predador: só lhe resta desviar a mente da dor que as presas causarão ao rasgar sua carne.

Com uma voz trovejante, digo ao infeliz:

"Eis o que vai acontecer com você, patife: você vai juntar alguns trocados hoje e encher a cara com meia dúzia de outros moleques que se acham bons demais para tentar ser alguém melhor na vida. Vai começar os seus estudos e discordará de tudo, porque acha que o mundo deve se adaptar às suas ideias, e não o contrário. Então vai se reunir com outro bando de vagabundos mimados como você para papagaiarem baboseiras e anacronismos que leram em livros empoeirados e terem uma boa desculpa para usar todo tipo de drogas em que conseguirem botar a mão, achando que aquelas alucinações na verdade representam uma expansão de sua limitada capacidade cognitiva. Você e seus comparsas vão achar que entendem a realidade melhor do que ninguém, veem o que mais ninguém vê, que possuem a solução para todos os problemas do mundo, que aqueles que discordam de vocês merecem ser achincalhado em praça pública e que o mundo deve lhes colocar nos ombros e aclamá-los como salvadores. Então vão pintar cartazes e sair por aí gritando palavras de ordem para tentar fazer os outros engolirem suas ideias, mas quando perceberem que ninguém compra a farsa que vocês estão tentando vender vão se emburrar, se revoltar e começar a espalhar o caos e a desordem usando justificativas vagas e distorcidas, apenas para dar vazão a seus impulsos destrutivos e seu egoísmo desenfreado. Quando finalmente tomar consciência de si, vai perceber que os dias de arruaça apenas consumiram pedaços de sua vida que poderiam ter sido melhor aproveitados para preparar-se para o futuro, mas aí será tarde demais. Você se verá incapaz, desqualificado, despreparado. Sua única saída será arrumar um emprego medíocre para sobreviver. Então vai assistir lentamente, dia após dia, a seus sonhos agonizarem e morrerem, um por um. Até que tudo o que vai sobrar dentro de seu espírito doente será a nostalgia de uma ilusão que você jamais viveu, e então passará o resto de seus dias tentando reencontrar a alegria de viver assistindo a vídeos de humor no Youtube escondido do chefe em um escritório mofado que fará uma ala de UTI parecer uma balada de Ibiza."

O moleque fica instantaneamente com cara de pano molhado. A felicidade escorre de seu rosto para o canto mais amargo e escuro de sua alma. No lugar de um sorriso resta apenas a face retorcida da vergonha e da desgraça. Vejo o pânico e o desespero dominar cada fibra de seu corpo.

Decido então acabar com o sofrimento dele e dou o golpe de misericórdia:

“Você entrou em que curso, rapaz?”, pergunto com minha voz trovejante.

“J...j... jornalismo...”, ele responde com as forças que ainda lhe restam.

“Ótimo, já vai mesmo treinando para pedir dinheiro no farol”, replico.

Sinal verde. Arremesso uma moeda de um centavo no olho do desgraçado, dou-lhe um peteleco na ponta do nariz e vou embora, deixando-o parado em meio aos carros, inerte diante da cruel realidade que lhe tomou de assalto.

Sinto a mente muito mais leve. A névoa se dissipa e os fios do raciocínio começam a se ligar. De repente, vislumbro uma saída para o mistério que eu vinha tentando resolver. Aos poucos, as dúvidas iam se dissipando, e mais uma resposta se revelou a mim quando o motor do meu carro superaqueceu e descobri o que aquela luz vermelha significava.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Epíteto, é o que amo

Outro dia, reparei em como não vemos mais pessoas usando chapéus por aí. Isso me fez pensar: o que aconteceu com os epítetos? Em que ponto da história resolvemos descartar esse belo apêndice de nosso cotidiano?

O epíteto facilita a vida de todos. É como um minicurrículo atrelado ao nome. Assim é possível saber o que esperar de alguém sem precisar engajar em nenhum tipo de papo-furado. Salva tempo e energia, ou, como gosto de dizer, mata dois patifes enfurnados em um covil em um bairro da pesada com um golpe de alabarda só.

Ah, bons tempos em que cada nome vinha acompanhado de um aposto . "Ulisses, o bravo"; "Heitor, o prodígio"; "Androceu, o polinizador"; "Jeremias, o criador de porcos". Tempos gloriosos, lembro-me como se pertencesse a um passado remoto que se tornou apenas um borrão em minha memória.

Vejam como os epítetos seriam úteis, ninguém precisaria fazer milhares de entrevistas até encontrar uma babá confiável com quem deixar os filhos. Afinal, seria muito fácil evitar sujeitos como "João, o molestador", "Tião, o pedófilo" ou "Josefina, a sequestradora". Do mesmo modo, nenhum filho contrataria uma enfermeira para cuidar dos pais idosos chamada "Adalgiza, a espancadora de idosos". Ninguém correria riscos pedindo favores para "Rubens, o imprestável", ou emprestando dinheiro para "Heitor, o caloteiro". No mundo corporativo, ninguém promoveria a um cargo de chefia "Roberto, o lesado", e nem colocaria nenhum "José, o desequilibrado" para dirigir uma empilhadeira.

Aliás, acho muito propício, nesse momento, anunciar a campanha mundial que estou lançando aqui no bairro. Chama-se “Epíteto - Escolha o seu, antes que escolham pra você”.

Por via das dúvidas, fiz uma lista de possíveis títulos que podem acompanhar meu nome. Afinal, nunca se sabe quando uma moda vai voltar. Vejam as costeletas, por exemplo. Estão em toda parte agora. Aliás, é bom que quando os epítetos voltarem venham acompanhados de suspensórios. Não entendo porque paramos de usar suspensórios. E broches.

Segue a lista, fiquem à vontade para utilizar como for conveniente:

Braddock Lewis, o sábio

Braddock Lewis, o prudente

Braddock Lewis, o sagaz

Braddock Lewis, o temível

Braddock Lewis, o esclarecido

Braddock Lewis, o esclarecedor

Braddock Lewis, o inevitável

Braddock Lewis, o interlocutor

Braddock Lewis, o associável

Braddock Lewis, o parcimonioso

Braddock Lewis, o retilíneo

Braddock Lewis, o imperscrutável

Braddock Lewis, aquele que não perdoa

Braddock Lewis, aquele que não deve ser nomeado, a não ser como Braddock Lewis, aí beleza

Braddock Lewis, aquele que nunca esquece

Braddock Lewis, aquele que não se distrai

Braddock Lew... EI, VEJAM, UM BOTÃO!!!

Braddock Lewis, o guardião do Destino

Braddock Lewis, o fiscal do Destino

Braddock Lewis, o corregedor do Destino

Braddock Lewis, o coletor de impostos do Destino

Braddock Lewis, o procurador-geral do Destino

Braddock Lewis, o servidor lotado no gabinete geral do Ministério do Destino em Guaratinguetá (SP)

Braddock Lewis, aquele que só fala uma vez

Braddock Lewis, aquele que nunca esquece

Braddock Lewis, aquele que jamais deixa uma tarefa incompleta

Braddock Lewis, aq

































Ops,

Braddock Lewis, o preponderante

Braddock Lewis, o ineditável

Braddock Lewis, o arauto da verdade

Braddock Lewis, a pedra no sapato da humanidade

Braddock Lewis, o fiapo de manga entre os molares da sociedade

Braddock Lewis, a farpa de madeira debaixo da unha do mundo

Braddock Lewis, o peteleco na orelha do conformismo

Braddock Lewis, o piparote no gogó do Universo

Braddock Lewis, o golpe de toalha molhada nas nádegas do Cosmo

Braddock Lewis, o cisco no olho do Progresso

Braddock Lewis, a espora nas ancas da Modernidade

Braddock Lewis, a anchova na pizza de frango com catupiri da raça humana

Braddock Lewis, aquele que nunca esquece